Análise de Conjuntura nº 002/2020

Bolsonaro tapa o nariz e corre pro abraço!

                                                                                                                     David Maciel

1- No sofá com Rodrigo Maia!


Há alguns anos (na verdade, há muitos anos!), famosa apresentadora de televisão tinha um programa em que recebia os convidados, geralmente artistas e celebridades, num cenário que reproduzia o ambiente de uma sala de visitas, com um imenso sofá de afundar a bunda, e simulava uma situação de intimidade e confiança com o público (auditório e telespectadores). A coisa corria solta, num bate-papo informal entremeado por apresentações artísticas e intervalos comerciais, até que a certa altura a apresentadora fazia uma pergunta indiscreta, cuja resposta todos já sabiam, mas que a intimidade simulada tornava surpreendente e reveladora. Assim transcorreu com a entrevista de Rodrigo Maia no programa Roda Viva do último dia 03/08/2020. Entre declarações de apoio à pauta do neoliberalismo extremado e o constante auto-elogio por seu papel determinante na aprovação dos maiores ataques aos direitos sociais e trabalhistas desde que esses foram criados, de repente Rodrigo Maia é indagado: por que ele não dá encaminhamento às dezenas de pedidos de impeachment contra Bolsonaro que dormem tranquilamente há meses em suas gavetas na presidência da Câmara dos Deputados? Ao que ele respondeu sem pestanejar: porque até o momento Bolsonaro não cometeu qualquer crime de responsabilidade! 

Os telespectadores devem ter se perguntado: Nenhum? As mentiras ditas e repetidas diariamente desde a posse; o incentivo e participação em atos antidemocráticos e que defendem a ruptura institucional; a apologia à Ditadura Militar e a incitação ao ódio; as denúncias de envolvimento em diversos crimes comuns e as diversas manobras com vistas à obstrução das investigações; o aparelhamento das instituições policiais e judiciais; a negligência diante de crimes ambientais cometidos com sua incitação; a negação da pandemia, nada menos que a maior calamidade pública da história do país, somada ao boicote cotidiano à toda e qualquer iniciativa para coordenar os esforços dos diversos entes públicos para enfrentar a crise; a prescrição de um remédio comprovadamente ineficaz e a ordem para que o Estado gastasse recursos com sua fabricação; etc., etc., etc.  Nada, nenhum desses atos configura crime de responsabilidade na compreensão do presidente da Câmara, um dos principais líderes do centro-direita. As pedaladas fiscais de Dilma Roussef, essas sim, constituem crime de responsabilidade para Rodrigo Maia e ele se jactou mais uma vez de ter não só votado na proposta, mas a apoiado ativamente. Ou seja, o presidente da República pode adotar uma postura genocida diante do maior morticínio da história nacional e anunciar aos quatro ventos que pretende uma ditadura fascista, o que não pode é dar um chapéu no ajuste fiscal!

Como nos antigos programas de auditório, a resposta já era esperada, mas o desembaraço com que foi dita causou estupefação, não tanto pela desfaçatez do personagem, mas por revelar de maneira cristalina a estratégia dos setores hegemônicos do bloco no poder na atual conjuntura. A estratégia de guerra de movimento do centro-direita contra Bolsonaro, desencadeada principalmente pelo STF, foi atenuada em favor de uma perspectiva de acomodação e se combina hoje a um “morde e assopra” que buscar manter Bolsonaro “na linha”. Se de um lado novas revelações reforçam ainda mais as suspeitas de envolvimento do presidente e dos filhos em esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro, como os depósitos de Fabrício Queiroz na conta da mulher do presidente  e as transferências em dinheiro para a conta da loja de chocolates do filho 01 ; por outro lado, Gilmar Mendes restaurou a prisão domiciliar de Queiróz , livrando Bolsonaro de uma delação premiada do ex-policial; enquanto o STF solicitou apenas que o governo parasse de produzir dossiês contra servidores públicos, sem investigar e punir os responsáveis e menos ainda publicizar os nomes das vítimas.  

Paralelamente avança rapidamente a tática do centro-direita de atração do centro-esquerda para uma frente ampla pela “pacificação” e pela “normalização”, que envolve o abandono definitivo de qualquer acerto de contas com o golpe de 2016, o “perdão” ao lulo-petismo e o esvaziamento do lavajatismo. Enquanto o STF anula duas sentenças de Moro, abrindo caminho para o reconhecimento de sua suspeição e imparcialidade nos processos da LavaJato, particularmente nas sentenças contra Lula ; a denúncia de Lula contra Dallagnol por conta dos mesmos crimes no famoso episódio do “power point” é arquivada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, provavelmente em troca da entrega da coordenação da LavaJato diretamente para a PGR ; a Justiça Federal absolve Temer do crime de obstrução de justiça no caso da JBS na LavaJato, episódio que gerou a votação de um pedido por seu impeachment no Congresso  e Gilmar Mendes reconhece o foro privilegiado de Serra e transfere para o STF seu processo por caixa 2 eleitoral. Na pacificação conduzida pelo centro-direita cabem todos os golpistas de 2016. Enquanto isto, os processos contra Lula e parentes na LavaJato vão sendo “trancados” , em outro movimento em torno da pacificação.  

Enquanto o isolamento social é definitivamente mandado às calendas gregas se propaga a tese, divulgada principalmente pelo governo e pela grande mídia não-bolsonarista (Rede Globo à frente), de que a contaminação pelo covid19 se encontra em processo de desaceleração, sugerindo que a pandemia está sob controle, reforçando o senso comum em torno da volta à normalidade e varrendo para debaixo do tapete a responsabilidade direta de Bolsonaro e de seu governo pela tragédia dos quatro milhões de contaminados e mais de 100 mil mortos. Na verdade, a dita redução nos números de mortos e de novos casos foi mascarada pelo aumento na subnotificação e no ocultamento de óbitos, e vem sendo deixada pra trás com novos repiques de crescimento, mantendo-se em patamares elevadíssimos.  O estabelecimento da “média móvel” como critério para avaliar o avanço da pandemia a partir da medição diária das novas contaminações e mortes pelo Consórcio dos Veículos de Imprensa (O Globo, G1, UOL, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Extra) tem servido para mascarar a situação real e sugerir que há estabilidade mesmo quando há crescimento em relação ao dia anterior. O último bastião do isolamento social ainda são as escolas, mas as pressões pela volta das aulas presenciais se intensificam por todos os lados, com governadores e prefeitos marcando datas de retorno sucessivamente adiadas simplesmente porquê a enorme maioria dos pais ainda se recusa a transformar seus filhos nos novos vetores de contaminação e propagação da doença. Na verdade, mesmo com uma média diária de 40 mil contaminados e mil mortos, predomina a perspectiva burguesa de “novo normal”, com o imperativo da acumulação impondo a retomada de todas as atividades econômicas e a covid19 naturalizando-se no cotidiano social como tantas outras tragédias plenamente controláveis, mas que causam enorme morticínio porque são potencializadas pela desigualdade social, pela precariedade dos serviços sociais públicos e pela ignorância, como a dengue, os acidentes de transito e os crimes de homicídio. Apesar da resignação geral, o “novo normal” deve não apenas manter os altos índices de contaminados e mortos por muito tempo ainda, mas acelerar o agravamento da pandemia conforme o que resta de isolamento social seja abandonado por pressão econômica ou por negacionismo. 

Os dados que indicam uma tímida retomada da atividade econômica no último mês reforçam ainda mais o senso comum em torno da normalidade e o consenso burguês em torno da tese de que “o pior já passou” e que “a economia não pode parar”.  O contentamento burguês com o governo Bolsonaro é tão grande que entre os empresários o índice dos que o consideram ótimo/bom é de 55% (com os maiores índices entre empresários do agronegócio e da indústria), enquanto 24% o consideram regular e apenas 16% acham o governo ruim ou péssimo.  No entanto, se a experiência dos países da Europa serve de exemplo, mesmo com o pico de contágio e de mortos, o processo de reabertura favoreceu uma nova onda de contaminação e a necessidade de novas medidas de isolamento social e controle.  Nada garante que o Brasil não viva uma nova escalada de contaminação e mortes, mesmo sem ter passado por uma redução efetiva, porém com muito maior dificuldade para impor novas e mais abrangentes restrições. Pesquisas de opinião recentes indicam uma tendência de queda na preocupação da população com a contaminação e no respeito ao isolamento social, enquanto crescem e as expectativas otimistas quanto ao fim da pandemia. Entre os que aprovam o governo Bolsonaro esses índices são mais altos ainda.  Na batalha pelo senso comum a contra-pedagogia do negacionismo e do desamparo econômico venceu a ciência e a racionalidade.

Além de favorecer o negacionismo bolsonarista e indiretamente legitimar sua postura genocida durante a pandemia, a imposição da “normalidade” pelas classes burguesas tornou ainda mais imperativa a superação da crise politica e a estabilização do conflito com o governo. Afinal, é preciso aprofundar as reformas neoliberais e viabilizar a retomada econômica. Daí o esfriamento da guerra de movimento do centro-direita contra o bolsonarismo e o reforço das “pontes” com o governo. A noticia de que no auge da crise com o STF, em maio, Bolsonaro tentou dar um golpe, mas foi devidamente desaconselhado pelos militares , trouxe um “alento” para os que acreditam na vitalidade das “instituições democráticas” e reforçou a crença no papel pretensamente moderador e legalista das Forças Armadas. Por conta disto, avança a adesão ao governo de setores do centro-direita que não compunham o “Centrão”, como Temer (MDB) e Aécio Neves (PSDB), enquanto Rodrigo Maia se comporta como candidatíssimo a uma nova e ilegal reeleição para a presidência da Câmara, com o aval do STF e o apoio de Bolsonaro e do Centrão.  Às tentações “heterodoxas” de setores do governo, que voltam a brandir o chamado Plano Pró-Brasil e o aumento de gastos públicos, e à proposta de recriação da CPMF o centro-direita acena com o imperativo do ajuste fiscal demonizando o serviço público e defendendo o seu arrocho salarial, propondo corte de gastos e vetando novos impostos, principalmente que taxem grandes fortunas ou onerem a folha de pagamento. Para o centro-direita a conta do coronavírus tem que ser paga com mais neoliberalismo extremado. Daí o apoio à cantilena austericida de Guedes.


2- A esquerda no poço sem fundo: da chantagem do “mal menor” à frente ampla pela normalidade e a pacificação.  


Enquanto o centro-direita facilita a vida de Bolsonaro, a cada dia fica mais evidente a crise orgânica da oposição de esquerda, particularmente do centro-esquerda. Em primeiro lugar é preciso considerar que desde o golpe de 2016 as condições objetivas de vida da classe trabalhadora pioraram de modo absoluto, com a ofensiva burguesa se manifestando não apenas no aumento da exploração e na retirada de direitos sociais, mas também no aumento da violência política e da criminalização das lutas sociais, o que intensificou os conflitos sociais nas cidades e no campo. Ou seja, não há qualquer razão objetiva que justifique uma postura de passividade e resignação diante desta situação por parte dos trabalhadores e suas organizações. No entanto, há tempos não se vive uma situação tão grave de fragilidade politica e ideológica como ultimamente, acirrada ainda mais pela pandemia. As inúmeras iniciativas de solidariedade, defesa da vida, assistência e educação desenvolvidas por sindicatos, movimentos sociais e comitês populares esparramados pelo país afora desde o início da pandemia revelam novas e alvissareiras formas de organização e mobilização popular. Porém, até o momento estas iniciativas não impactaram o processo político nem amadureceram uma perspectiva ético-política que fosse além do combate à pandemia e ao desamparo imposto pelo Estado e pelo mercado à milhões de trabalhadores.

Desde a derrota histórica representada pelo golpe de 2016 a esquerda brasileira perdeu inserção institucional, força organizativa e capacidade mobilizatória. Em conjunto os partidos de esquerda perderam filiados  e mandatos ; diminuiu o numero de trabalhadores sindicalizados , as greves caíram pela metade  e as ocupações de terra reduziram-se acentuadamente . Tal recuo tem por causa não apenas a ofensiva jurídica, institucional, politica e midiática desencadeada pelo bloco no poder para criminalizar as lutas sociais e restringir o espaço político da esquerda, mas também se deve à impasses políticos e estratégicos que vem de muito antes da derrota de 2016. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a oposição de esquerda não possui um programa estratégico capaz de se contrapor ao neoliberalismo, seja em sua versão extremada, seja em sua versão moderada. O projeto democrático-popular, que orientou a luta popular no país desde a crise da ditadura militar foi paulatinamente metamorfoseado num projeto neodesenvolvimentista que garantiu a eleição de Lula em 2002, mas foi abandonado em favor do neoliberalismo moderado, aplicado pelos governos petistas e fiador do lulismo. Paralelamente a perspectiva classista que nucleou as lutas sociais desde a redemocratização e que tinha na construção da hegemonia dos trabalhadores seu eixo central, mesmo que definida de maneira algo difusa, foi perdendo espaço para perspectivas identitaristas, de perfil particularista e corporativista, que pouco se referem à contradição ente capital e trabalho e se limitam a exigir o reconhecimento de direitos prometidos pela própria cidadania burguesa, mas nunca entregues. Neste momento de aceleração da escalada autoritária e de avanço da violência politica tais demandas adquirem urgência e grande visibilidade e parecem sintetizar em si mesmas todas as dimensões da questão democrática e da problemática do poder de um ponto de vista transformador. Porém, ao não colocar em questão o conteúdo de classe das respectivas formas de opressão tal pretensão não passa de uma quimera, devidamente cooptada pela utopia liberal.

Este refluxo teórico-estratégico se reflete na incapacidade de apresentação de um programa de enfrentamento das crises gêmeas (econômica e epidemiológica) e da ameaça fascista que vá além de políticas sociais compensatórias, do indutivismo econômico estatal e do defensivismo estático diante da destruição dos direitos sociais. Este se manifesta na bandeira do “nenhum direito a menos”, quando o que a situação de crise coloca para a perspectiva popular é a ampliação dos direitos. No plano da luta contra a ameaça fascista a coisa se resume a uma defesa abstrata da “democracia”, entendida como autonomia entre os poderes, Justiça apolítica e imparcial e liberdade de expressão e opinião como se já não estivéssemos em plena “democracia restrita” e como se as instituições pretensamente garantidoras dos direitos democráticos frente ao proto-fascismo do governo Bolsonaro (STF, Judiciário, Congresso, imprensa) não tivessem protagonizado o golpe de 2016 e não estivessem envolvidas até o último fio de cabelo na escalada autoritária em curso.

Resulta disto uma ação politica pautada por um “institucionalismo crônico”, ainda mais fortalecido pela necessidade de isolamento social imposta pela pandemia, que abdica das lutas sociais em favor da luta pela conquista de espaços na institucionalidade e que tem na moderação e na pretensão de confiabilidade para o bloco no poder as principais armas contra o anticomunismo e a demonização da esquerda. O isolamento sofrido pela greve dos trabalhadores do Correios, que tinha como centro de sua pauta a luta contra a privatização da empresa, é uma evidencia deste comportamento. Diante do verdadeiro cerco imposto pelo governo, pela Justiça e pela mídia aos grevistas, as principais centrais sindicais e partidos de esquerda adotaram apoios protocolares, quando não o silêncio. Isto tem colocado os partidos com representação institucional à reboque da “chantagem do mal menor” imposta pela oposição de centro-direita em suas tentativas de contenção de Bolsonaro. As expectativas criadas em torno do processo eleitoral de 2020 reforçam ainda mais este “institucionalismo crônico”, pois se alimentam da perspectiva de ampliação ou, no mínimo, manutenção dos espaços conquistados na institucionalidade, cruciais para a sobrevivência material da maioria dos partidos e para uma hipotética disputa presidencial em 2022. Daí que no atual processo das eleições municipais a frente de esquerda não se constituiu sequer como frente eleitoral, dividindo o eleitorado de esquerda e alimentando uma luta fratricida por mandatos. É fato que a legislação eleitoral dificulta enormemente a frente eleitoral, na medida em que proibiu as coligações partidárias na eleição proporcional (vereadores) e exige que os partidos atinjam um coeficiente elevado de votos para manter seu registro, mas as coligações para eleições majoritárias (prefeito) não estão proibidas.  O que ocorre é que os partidos têm no seu candidato a prefeito um “puxador de votos” para a legenda e que predomina uma perspectiva “hegemonista” da parte dos maiores partidos, principalmente do PT. O argumento de Lula de que cada partido tem direito de apresentar sua própria candidatura no 1º turno, mesmo onde a viabilidade eleitoral dos seus candidatos é mínima, como o candidato petista em São Paulo, e de que a unidade deve se dar apenas no 2º turno, revela este tipo de posição e sua cegueira estratégica.  O problema é que para que haja unidade no 2º turno é preciso que algum candidato de esquerda esteja no segundo turno, o que não é seguro em lugar nenhum de acordo com as pesquisas de intenção de voto.

A possibilidade de reabilitação de Lula e do PT é outro poderoso elemento de moderação da oposição de esquerda porque o principal partido deste campo busca mostrar-se confiável e capaz de reassumir a condição de principal operador político do grande capital. Os sinais emitidos por setores do centro-direita de que chegou a hora de “perdoar” o PT   e a anulação de determinadas sentenças de Moro na LavaJato alimentam esta expectativa e reacendem o pragmatismo petista. Neste sentido, apesar das manifestações em contrário de Lula e de outros dirigentes petistas, a frente ampla com os setores golpistas funciona na prática e chega a ser abertamente defendida em termos eleitorais por lideranças da oposição de esquerda como Ciro Gomes (PDT), Flávio Dino (governador do Maranhão, PC do B) e Rui Costa (governador da Bahia, PT). Além de contemporizar diante da ameaça representada por Bolsonaro, este comportamento cria um vácuo político que impede a constituição de uma alternativa politica e ideológica junto às massas trabalhadoras, dando chance para que o bolsonarismo o ocupe.  


3- Um Bolsonaro “pai dos pobres”? 


Enquanto o centro-direita busca mantê-lo sob controle e a esquerda abdica da disputa real, Bolsonaro segue firme em sua guerra de posição com vistas à criação das condições para o autogolpe fascista ou, no mínimo, para o fechamento maior do regime. Além de soldar ainda mais sua aliança com os militares aumentando o orçamento do Ministério da Defesa em 2021  e autorizando que estes acumulem salários e comissões para muito além do teto salarial do serviço público ; utiliza os setores bolsonarizados do poder judiciário para perseguir adversários políticos, como Witzel, e controlar as investigações contra o clã presidencial ; enquanto loteia o governo com o Centrão e tenta conter o próprio destempero verbal e a agressividade, apesar de nem sempre conseguir.  No entanto, além destas iniciativas, a estratégia de guerra de posição desenvolvida por Bolsonaro na atual conjuntura conquistou importante casamata com uma mudança significativa na percepção de parte expressiva da população quanto ao seu papel na pandemia e quanto ao caráter de sua administração. Ao contrário do esperado pela quase totalidade dos analistas, apesar do agravamento da crise econômica e do altíssimo índice das contaminações e mortes pelo covid19, que coloca o país no segundo lugar mundial, a popularidade de Bolsonaro não só não diminuiu como aumentou significativamente e em setores sociais e regiões que tinham uma adesão menor ao seu governo. A tendência de queda em sua popularidade, que se mantinha desde a posse, foi revertida e com uma alteração importante em termos de composição social, pois a perda de apoio entre setores de classe média, desiludidos com seu comportamento genocida e envolvimento com o crime organizado e a corrupção, foi mais do que compensada pela adesão dos segmentos mais precarizados e pior remunerados da classe trabalhadora, particularmente entre os que ganham até dois salários mínimos. Segundo pesquisa divulgada pelo Data Folha em 14 de agosto os que avaliam o desempenho do presidente como ótimo ou bom subiu de 32% em junho para 37% agora, e os que o avaliam como regular subiu de 23% para 27%, enquanto os que o consideram ruim ou péssimo caiu acentuadamente de 44% para 34%. Houve queda da avaliação negativa em quase todas as faixas de renda e escolaridade e regiões do país, mas principalmente entre os mais pobres, os menos escolarizados e os mais jovens e na região Nordeste, reduto lulista desde 2006 . 

Em relação ao comportamento genocida de Bolsonaro durante a pandemia os resultados da pesquisa são ainda mais surpreendentes, pois nada menos que 47% avaliam que ele não tem culpa pelas mais de 100 mil mortes e 49% avaliam que ele não é o responsável pelo avanço das contaminações, apesar de o mesmo percentual de entrevistados considerar que não se fez o necessário para evitar o altíssimo número de mortes . Ou seja, quase a metade dos entrevistados considera que houve inépcia no enfrentamento da pandemia, mas também quase a metade avalia que esta inépcia não é culpa de Bolsonaro!

É fato que estas pesquisas foram realizadas por telefone, como todas as outras feitas durante a pandemia, o que pode trazer distorções consideráveis por conta de sua abrangência mais limitada em termos sociais e do contato virtual do entrevistador com o entrevistado, mas elas captaram movimentos de opinião que já vinham se dando e que se intensificaram. Isto significa que por mais que consideremos que o crescimento dos índices de popularidade de Bolsonaro esteja relativamente “inflacionado”, ele expressa uma tendência real que nos obriga a tentar responder duas questões: quais as razões desta mudança e até que ponto elas são sustentáveis no médio prazo.

As razões para esta significativa alteração na avaliação popular sobre Bolsonaro e seu governo tem origem em alguns fenômenos mais profundos e de longa duração, que precisam ser melhor estudados, e outros próprios da atual conjuntura. Entre as causas mais profundas gostaríamos de avançar algumas hipóteses. Em primeiro lugar é preciso destacar o peso de uma visão fatalista e resignada do mundo, alimentada pelo fundamentalismo cristão e pelos baixos níveis de formação educacional de grande parte da população. O fortalecimento econômico, político e midiático das seitas neopentecostais e do catolicismo carismático, com entusiasmado apoio estatal, somado à uma perspectiva pedagógica fundada no quantitativismo e no atendimento das necessidades do mercado (formação de mão de obra) agora cobram o seu preço em termos de avanço do irracionalismo e da mistificação. Outro fator importante é o crescente alheamento de grande parte da população em relação ao noticiário, motivado por uma grande desconfiança em relação à imprensa, mas também por dificuldades financeiras para o acesso à jornais e revistas impressos ou digitais, o que a torna refém da “opinião” de padres/pastores, patrões, grupos de whatsapp, etc. As fake news vicejam neste ambiente.  Outro elemento pode estar ligado à um certo “cansaço” com a pandemia, que exige um enorme sacrifício econômico e social em termos de isolamento social e de rigorosos hábitos de higiene e limpeza diante de uma possibilidade de contaminação vista como hipotética. Como já se disse, a maioria das pessoas só toma consciência plena dos riscos da pandemia quando “a morte bate na porta”, ou seja, atinge algum amigo ou familiar. Além disso, há que se considerar a importância do autocratismo como perspectiva ideológica dominante na sociedade brasileira, que despreza valores igualitaristas como o direito à vida e à dignidade humana em favor do elitismo e da violência social. Ou seja, enquanto só os pobres estiveram morrendo, mesmo que em larga escala, parece que as coisas estão dentro da “normalidade”.

Entre os fatores conjunturais, para além da postura acomodatícia do centro-direita e da impotência politica da esquerda, que permitem à Bolsonaro uma margem de manobra maior, é importante considerar os efeitos do auxilio emergencial e a própria percepção otimista de que as coisas estão voltando ao normal. Aprovado à revelia do governo, que fez de tudo para dificultar sua concessão, o auxilio emergencial de 600 reais acabou se transformando num dos maiores programas de transferência de renda do mundo, atendendo em torno de 60% da população, justamente os setores economicamente mais vulneráveis (desempregados, informais, autônomos e inativos por conta da pandemia). Seu impacto social foi tão grande que desde que entrou em vigor, em abril, foi capaz de reduzir as taxas de pobreza e pobreza extrema, funcionando como um elemento de redução da desigualdade social, mesmo que provisoriamente.  Os beneficiados pelo auxilio emergencial (65,4 milhões) são quase 80% mais do que os trabalhadores empregados (37,7 milhões), equivalendo a 68% de toda a força de trabalho (ocupados ou não).  Mais da metade dos recursos do auxílio emergencial é gasta com alimentação (53%), uma parte importante com o pagamento de contas (25%) e outra com as despesas da casa (16%), o que revela sua centralidade na reversão relativa das dificuldades econômicas criadas pela pandemia.  Ora, apesar da resistência de Bolsonaro à aprovação do auxilio neste valor e do negaceio do governo na agilização do cadastro dos beneficiários e na viabilização dos pagamentos, a população identifica o benefício como iniciativa do governo federal, como se fosse uma concessão de seu maior adversário! Pesquisa recente revela que para 65% da população Bolsonaro é o principal responsável pelo auxílio emergencial e destes 96% aprovam seu governo. 

Numa situação de relativa desinformação de grande parte da população em relação ao dia a dia da política institucional, a estatolatria acaba prevalecendo e jogando seu peso político à revelia da verdade dos fatos! Neste sentido, os sinais de que o auxílio emergencial vinha aumentando a popularidade de Bolsonaro entre os mais pobres e particularmente nos redutos eleitorais do lulismo, como levantamos em artigo anterior , mais do que se confirmaram nas pesquisas mais recentes. Isto evidencia não só a fragilidade dos alicerces do lulismo, incapaz de organizar os trabalhadores para além do paternalismo estatal e do eleitoralismo, mas a capacidade de cooptação das políticas sociais compensatórias, particularmente das políticas de transferência de renda, numa sociedade extremamente desigual e onde prevalece a politica do favor sobre a politica dos direitos no trato das questões sociais. O fato de que há um risco real das bases lulistas se bolsonarizarem evidencia o substrato neoliberal comum a ambos e o peso da estatolatria no processo de construção da hegemonia nos marcos da autocracia burguesa, independente da coloração politica do governo.

É fato que o lulismo não foi construído apenas com base nas políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, mas num conjunto variado de iniciativas: desde políticas de valorização salarial, fortalecimento do mercado consumidor e de acesso dos mais pobres aos serviços sociais públicos (educação, moradia, saneamento, saúde) até o indutivismo estatal com vistas ao crescimento econômico e à expansão imperialista do capitalismo brasileiro.  Também foi enormemente beneficiado por uma conjuntura econômica internacional favorável e que pôde ser estendida mesmo depois da crise de 2008. Mas a situação econômica e social é tão dramática no atual momento que talvez não seja necessário mobilizar tantos recursos para obter dividendos políticos assemelhados.

Bolsonaro e os setores “pragmáticos” do seu governo sabem disto e não à toa apresentam um conjunto de iniciativas e de propostas que contradizem em certa medida a politica econômica de “terra arrasada” adotada até o momento por Guedes e vislumbram solidificar e ampliar o apoio conquistado em torno do auxilio emergencial. Além de estender o pagamento do auxilio emergencial até o final do ano, mesmo que pela metade do valor, o governo pretende transformá-lo na base de um novo programa de transferência de renda, o Renda Brasil, maior que o Bolsa Família em termos de valor e número de beneficiários. Enquanto o primeiro atende 43 milhões de beneficiários e paga em média 189 reais, o segundo pretende atingir 66 milhões e pagar em torno de 257 reais.  A prorrogação do auxilio emergencial até dezembro busca ainda ampliar a presença do bolsonarismo, e dos aliados, no sistema de representação politica, na medida em que pode funcionar como um significativo cabo eleitoral nas próximas eleições municipais. A presença ostensiva das principais lideranças do Centrão ao lado do presidente no anuncio da prorrogação do benefício fala por si.  O chamado Plano Pró-Brasil, lançado pela ala militar e que prevê investimentos públicos e privados em diversos setores de infra-estrutura, tem retomado diversas obras públicas paralisadas desde 2016 procurando com isto estimular a atividade econômica. A retomada das obras do PAC também se dá com o renascimento do programa “Minha Casa, Minha Vida”, praticamente desativado desde o governo Dilma, retomado com o nome “Casa Verde Amarela” e financiado com recursos do FGTS e do Fundo de Desenvolvimento Social.  

No entanto, apesar de alimentadas pelo cálculo político de que o apoio popular é crucial para Bolsonaro não só compensar o recuo forçado de suas hostes fascistas nas ruas, mas enfrentar o cerco do centro-direita e se fortalecer eleitoralmente com vistas ao seu almejado autogolpe, antes ou depois de 2022, tais iniciativas contam com dificuldades estruturais e enfrentam resistências importantes no governo e no bloco no poder. Em primeiro lugar, a profundidade de crise econômica torna as medidas pretendidas pelo governo insuficientes diante da magnitude do problema. Apesar do baixo crescimento do PIB em 2019, 1,1%, o primeiro semestre de 2020 terminou com uma queda no PIB de 5,9%, comparado ao mesmo período do ano anterior. Entre o primeiro e o segundo trimestre houve uma queda brutal de 9,7%, no PIB; queda de 15,4% na formação bruta de capital fixo; de 12,5% no consumo das famílias e de 8,8% no consumo do governo.   A taxa de desemprego fechou o segundo trimestre em 13,3%, maior taxa desde 2017; o número de desalentados subiu a 5,7 milhões de pessoas, outro record; o número de desempregados e de pessoas que estão fora do mercado de trabalho continua superior ao número de ocupados e houve quedas acentuadas no número de trabalhadores com carteira assinada, no número de trabalhadores sem carteira assinada e no de trabalhadores por conta própria, enquanto a massa de rendimentos circulante na economia caiu 5,6%.  De janeiro a julho de 2020 a queda na arrecadação do governo federal foi de 15,16%, comparado com o mesmo período do ano passado , e nos estados o primeiro semestre fechou com uma queda de 6% na arrecadação.  Estes dados indicam que apesar do recente otimismo burguês em torno da retomada da economia a realidade fática demonstra um cenário dramático e bastante distante de qualquer normalização. Não é à toa que apesar da intenção de Bolsonaro e de setores do governo em ampliar os gastos púbicos com os programas mencionados acima as dificuldades sucessivamente demonstradas pela equipe econômica em encontrar fontes de financiamento que não impliquem em flexibilização do teto de gastos, além da pequena magnitude dos investimentos previstos comparado com iniciativas anteriores de indução econômica e com as exigências de uma politica efetivamente anticíclica demonstram seu fôlego curto. O que o Programa Pró-Brasil pretende gastar até 2022 com recursos federais, 30 bilhões de reais, equivale a 1/3 do que o governo Dilma Roussef gastou com o PAC só no ano de 2014! Mesmo se considerarmos que o auxilio emergencial bem ou mal minorou a gravidade do drama vivido por milhares de trabalhadores durante a pandemia, tudo indica que a dramaticidade vai aumentar a partir de setembro, pois seu valor vai ser reduzido para a metade. O mesmo vale para o Renda Brasil, que terá valor maior que o Bolsa Família, mas ainda assim a metade do auxilio emergencial, ou menos! Isto se refletirá diretamente num aumento da taxa de desemprego, pois muitos pararam de procurar emprego por conta do auxilio emergencial, mas com a redução do seu valor devem voltar a disputar vagas, inexistentes, no mercado de trabalho .

Além disso, há as dificuldades dentro do próprio governo e com o bloco no poder. Como representante do capital financeiro na composição governamental, Guedes se coloca francamente contra qualquer aumento de gastos e afrouxamento do ajuste fiscal duro que pretende impor após o final da pandemia. Além de ameaçar o presidente com o risco de um impeachment em caso de desobediência à lei do teto de gastos, propõe viabilizar os novos gastos com aumento de impostos, reforma administrativa, ataques aos servidores públicos e novos cortes de direitos e benefícios sociais como seguro defeso, seguro desemprego, abono salarial, salário-família, auxilio alimentação, farmácia popular, etc. Por oportunismo político Bolsonaro foi contra os cortes em direitos dos trabalhadores formais, alegando que “não ia tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”  , mas o ataque aos servidores e o apoio à Reforma Administrativa são consensuais.  A Reforma Administrativa anunciada atingirá os futuros servidores e vai precarizar ainda mais as condições de trabalho, promoção na carreira e rendimentos, porém só terá impacto na redução das despesas do governo no médio e longo prazos.  Por isto, é crucial atingir agora os que já estão no serviço público. Além do congelamento salarial até o final de 2021, já aprovado no Congresso, Guedes pretende cortar o que chama de “penduricalhos” como gratificações, auxilio transporte e auxilio alimentação, e ativar o gatilho que permite corte de salários e de jornada de trabalho quando for ultrapassado o limite de 60% do orçamento com o pagamento da folha salarial. A proposta de Reforma tributária prevê a criação de novos impostos - sobre saúde, educação e uma nova CPMF, além do corte de benefícios e isenções fiscais , reproduzindo o padrão regressivo do sistema tributário brasileiro. 

Apesar de seu “oportunismo absoluto”, de suas escaramuças com Guedes e do consenso burguês contra o novo imposto sobre transações financeiras, reverberando na postura hostil do centro-direita à proposta, por enquanto Bolsonaro mantém-se fiel ao teto de gastos, porque sua ruptura implicaria num processo de enfrentamento com os interesses hegemônicos do bloco no poder que poria abaixo sua estratégia de guerra de posição. Portanto, o financiamento dos novos gastos sociais e em infra-estrutura que o governo pretende fazer (Renda Brasil, Plano Pró-Brasil, Casa Verde Amarela) deve manter o respeito ao teto de gastos e combinar privatizações, desregulamentação de atividades para atrair investimentos privados, cortes com servidores públicos; redução ou contingenciamento de despesas com saúde e educação e outros serviços sociais públicos. No entanto, diante dos limites evidentes desta solução num cenário de depressão econômica profunda e piora nas condições sociais pode ocorrer uma espécie de “flexibilização seletiva” do teto de gastos a partir de 2021, com a emissão de novos títulos da dívida pública e endividamento externo. Ou seja, os cortes já estabelecidos para os gastos com saúde, educação, serviço público, etc. na lei orçamentária do ano que vem seriam rigorosamente mantidos, porém a “farra rentista” continuaria, com a possibilidade de ampliação do endividamento público. Aliás, o aumento da dívida pública vem sendo adotado desde o início da pandemia para fazer frente ao aumento das despesas não apenas com o auxilio emergencial, mas também com as obras de infra-estrutura retomadas neste ano.  A possibilidade do bloco no poder e seus representantes políticos toparem esta flexibilização, por meio de uma medida que prorrogue o chamado “orçamento de guerra” para o ano que vem é real. Isto porque além de remunerar os bancos e o conjunto do capital rentista, mesmo com juros baixos a emissão de títulos da dívida pública permite a setores do capital produtivo compensar as perdas com a retração econômica, valorizando-se pela via especulativa. É fato que o dogma da busca eterna pelo equilíbrio fiscal seria contrariado na prática, apesar das declarações em contrário, o que pode levar Guedes a sair do governo por conta do seu doutrinarismo, mas essa é a solução possível nos marcos do próprio neoliberalismo extremado adotado pelo governo. Isto porque fortalece ainda mais o rentismo e a financeirização da economia, pode estimular a recuperação do consumo por meio da transferência de renda, coloca os trabalhadores precarizados contra os servidores públicos e substitui direitos sociais e trabalhistas por favores.

Ao buscar o apoio dos trabalhadores precarizados Bolsonaro pode mobilizar a estatolatria a seu favor e fortalecer ainda mais seu projeto fascista de poder, conquistando o consenso junto à amplas massas da população, como nos exemplos históricos de Mussolini e Hitler. Ou então, não sendo possível a solução extrema, pode se aproveitar do apoio popular e da situação de caos social com o agravamento das crises gêmeas para fechar o regime ainda mais com mudanças políticas e legais devidamente aprovadas, como já acontece na Rússia e na Hungria, por exemplo. Por enquanto os maiores obstáculos a isso são as próprias crises gêmeas, que podem colocar tudo a perder com uma nova aceleração de contaminações e mortes e o agravamento ainda maior da depressão econômica, forçada pela necessidade de retomada do isolamento social. Porém, o atual nível de resignação da população diante da carnificina da covid19 e o consenso em torno da “volta à normalidade” enfraquecem esta possibilidade. Apenas a reação dos trabalhadores e de suas organizações pode reverter este cenário. Tá na hora da esquerda s air do poço e voltar à luta.


Escola de Formação Socialista