Análise de Conjuntura nº 003/2022

Eleições e crise brasileira


Consolidado em 18 de outubro de 2022.


O 1º turno das eleições gerais, ocorrido no último dia 2 de outubro, revela com clareza as mudanças recentes na correlação de forças entre as classes e grupos sociais, o atual estágio do processo de transição autoritária iniciado com o golpe de 2016 e o caráter da ofensiva burguesa no momento. Para além da perspectiva comum a todas as burguesias - manutenção do neoliberalismo extremado, das contrarreformas, do tripé neoliberal na política econômica (superávit primário, regime de metas de inflação e câmbio flutuante) e das medidas de restrição do espaço político dos trabalhadores e de criminalização das lutas sociais - revela-se o avanço da perspectiva fascistizante, com um giro à extrema-direita da maioria das forças políticas burguesas, galvanizadas pelo bolsonarismo e pela candidatura de Bolsonaro à reeleição.

Isto fortalece uma tendência de endurecimento político e de radicalização da transição autoritária e do neoliberalismo, indicando que a perspectiva de recrudescimento da ofensiva burguesa contra os trabalhadores tem ampliado sua capacidade de convencimento junto à sociedade, inclusive entre os próprios trabalhadores.

Esta situação diminuiu a margem de ação das forças políticas de direita que buscavam constituir uma via política própria e eleitoralmente competitiva, a chamada “terceira via”, capaz de garantir a manutenção da ofensiva burguesa nos marcos da democracia restrita e do neoliberalismo extremado. Ao mesmo tempo também reduziu a autonomia do chamado “Centrão”, setores da direita marcadamente mais fisiológica, que no momento constituem a base parlamentar do governo, mas que na atual situação de polarização foram forçados à adesão ao bolsonarismo, a grande maioria, ou à candidatura Lula por razões eleitoreiras. Por outro lado, o campo político lulista, que reúne amplo arco de forças, da esquerda ao centro-direita, em torno da candidatura Lula, e que polariza a disputa com o bolsonarismo, demonstra grande dificuldade para se colocar claramente em favor da paralisação e reversão da transição autoritária e da orientação neoliberal, apesar da grande força eleitoral demonstrada na disputa presidencial. Isto indica não só as dificuldades de organização e mobilização enfrentadas pelos trabalhadores nos últimos anos, mas as próprias contradições de uma aliança que busca restaurar a política de conciliação de classes num período de radicalização da luta de classes.   


I - Os resultados eleitorais.


Adiantamos aqui que por conta das alterações recentes na correlação de forças em favor das classes burguesas e da perspectiva fascistizante analisaremos os resultados eleitorais dividindo as forças políticas em três grandes campos: o do bolsonarismo, o do lulismo e o do centro-direita. O campo do bolsonarismo reúne não só a coligação que apoiou a candidatura Bolsonaro, mas também as forças do chamado “Centrão” que o apóiam no Congresso e nos estados e se colocam no campo da direita mais conservadora ou mesmo da extrema-direita. Essas forças tendem a compor sua base de apoio num hipotético segundo mandato. Isto vale mesmo para partidos que oficialmente lançaram candidatura própria à presidência, como União Brasil e PTB. O campo do lulismo é capitaneado pelo PT e seus aliados tradicionais de esquerda e centro-esquerda, mas também por partidos de centro-direita, inclusive partidos que compõem o “Centrão”. A este campo acrescentamos o PDT, não apenas porque setores do partido apoiaram a candidatura Lula já no 1º turno, apesar de Ciro Gomes ser o seu candidato à presidência, e porque o partido tem maior afinidade político-ideológica com este campo, mas também porque deve compor a base parlamentar de um hipotético governo petista, como indica a adesão oficial do partido a Lula no segundo turno. Finalmente, o terceiro campo é composto pelos partidos tradicionais de centro-direita, que adotaram uma postura ambígua diante do governo Bolsonaro apoiando sua política econômica, apesar de recusar sua perspectiva fascista. Não por acaso segmentos destes partidos também compõe o “Centrão” e apoiam a reeleição de Bolsonaro, enquanto outros apoiam a candidatura Lula. Isto acontece tanto com o PSD, que não lançou candidatura, quanto com o MDB, o PSDB e o Cidadania, que lançaram candidatura própria. Incorporamos a este campo o Novo, que também lançou candidatura própria e que apesar das posições neoliberal extremadas e do antipetismo raivoso, apresenta uma postura relativamente crítica à perspectiva fascista de Bolsonaro. 

Começaremos pelo campo do bolsonarismo. Apesar da derrota na disputa para a presidência, os resultados gerais do primeiro turno das eleições indicam uma vitória politica, institucional e ideológica do bolsonarismo e de seus aliados de direita e extrema-direita. Tal vitória é resultado de fatores estruturais, há muito em curso na sociedade brasileira, e da conjuntura política recente. Após meses de pregação golpista, ameaças ao processo eleitoral, uso e abuso de medidas assistencialistas com finalidades eleitoreiras, Bolsonaro e seus aliados conseguiram mobilizar o voto útil antipetista, dominando as instâncias de visibilidade mais imediata da esfera pública (ruas, mídia e redes sociais) por meio da violência política, da intimidação, de nova avalanche de fake news, mas também da intensa militância de seus apoiadores, criando uma verdadeira “onda” nos últimos dias de campanha. O apoio, formal ou não, à sua candidatura pela maior parte dos partidos do “Centrão”, tão cioso de sua autonomia fisiológica diante de qualquer governo, contribuiu para este resultado e revela a força política do bolsonarismo.

Os resultados eleitorais são reveladores desta ofensiva, que se manifesta não só na elevada votação obtida por Bolsonaro no 1º turno, nada menos do que 43% dos votos, mas também nas disputas para Câmara Federal e Senado, governos estaduais e legislativos estaduais. Na Câmara dos Deputados a coligação que apoiou Bolsonaro (PL, PP e Republicanos) subiu de 178 para 187 deputados, com especial destaque para o partido do presidente, cuja bancada conquistou 23 novos mandatos. Entre os partidos que podem ser considerados aliados do bolsonarismo mesmo que tenham apoiado outras candidaturas presidenciais ou não formalizaram apoio a Bolsonaro (União Brasil, Podemos, Patriota, PTB, PSC) o número de deputados federais aumentou de 76 para 82, com especial destaque para o UB, fusão de DEM com PSL, que conquistou mais 8 deputados. No total, a bancada bolsonarismo/aliados detém nada menos que 269 deputados federais (52% do total de 513 deputados), 15 a mais do que atualmente.  No Senado o conjunto dessas forças políticas passará a deter 43 mandatos (53% do total de 81 senadores), 9 a mais do que atualmente.  Na disputa para os governos estaduais, 8 dos quinze governadores eleitos no 1º turno pertencem a essas forças, sendo que oito deles declararam apoio a Bolsonaro no 2º turno, além do governador reeleito de Minas Gerais, do Novo. Dos 24 candidatos que disputarão o 2º turno em 12 estados, 11 são deste campo político.  Na disputa para as assembléias estaduais o avanço também foi significativo. A representação dos partidos da coligação bolsonarista cresceu enormemente, passando de 154 para 289 deputados estaduais (88% de crescimento), com maior destaque para o PL e o Republicanos. Entre os partidos aliados destaca-se o União Brasil, com 94 deputados, o maior entre os partidos aliados do bolsonarismo. Ao todo 460 do total de 1059 mandatos de deputados estaduais e distritais pertencem aos partidos deste campo (43%).  

Além desses resultados, que indicam expressivo avanço institucional, o bolsonarismo ainda demonstrou grande força política e ideológica ao eleger para o Congresso Nacional ex-membros e/ou aliados do governo diretamente identificados com a perspectiva fascistizante e o descalabro da administração Bolsonaro como Hamilton Mourão, Damares Alves, Marcos Pontes, Eduardo Bolsonaro, Eduardo Pazzuello, Ricardo Salles, Sérgio Moro, Bia Kicis, Carla Zambelli, Magno Malta, além de Deltan Dallagnoll, prócer do lavajatismo. Além do apoio militante de diversas frações burguesas e de grande parte das classes médias, identificadas com o bolsonarismo em grande medida por conta de sua propositura desigualitária, hierarquizante e concentracionista, este contou ainda com grande penetração entre os trabalhadores, particularmente entre os que ganham de 2 a 10 salários-mínimos. Apesar da grave crise econômica e social que afeta diretamente a vida dos trabalhadores e conta com grande responsabilidade da administração federal, este apelo popular do bolsonarismo revela não só alto grau de resiliência ao longo dos quatro anos de mandato, mas grande enraizamento social e considerável vocação hegemônica no atual quadro de crise.

Já no campo do lulismo, a vitória na disputa presidencial e em alguns estados foi contrabalançada pelo fraco desempenho na disputa para o Congresso Nacional e para os legislativos estaduais, pela indefinição político-programática e pelo “quietismo” em termos de mobilização. Com 48,43% dos votos Lula teve o segundo melhor desempenho de um candidato petista no 1º turno desde 1989, só superado pela votação de 2006, e ainda por cima superou a votação petista de 2018 em 19%. É uma vitória inegável diante da perseguição política, judicial e midiática a que foram submetidos o partido, o candidato e a própria esquerda nos últimos anos. No entanto, a vitória na disputa presidencial não se refletiu na disputa para as outras instâncias da institucionalidade. Na Câmara dos Deputados a coligação que apoiou Lula (PT, PC do B, PV, PSB, PROS, Solidariedade, AGIR, Avante), também composta por partidos de direita, conquistou apenas dois novos mandatos, passando de 120 para 122 deputados federais, apesar do crescimento considerável da bancada petista (de 56 para 68). Se somarmos a este campo o PDT, que declarou apoio a Lula no 2º turno, a bancada federal deste conjunto de forças continua do mesmo tamanho, pois o número de parlamentares deste partido caiu de 19 para 17. No total este campo conquistou 139 deputados federais (27%).  No Senado a situação é de redução, pois se a coligação lulista manteve os mesmos 11 senadores que tem hoje, somado com a bancada do PDT, que caiu de 3 para 2 senadores, há uma queda de 14 para 13 mandatos (16%).  O mesmo ocorre nas eleições para governos estaduais, pois se em 2018 a coligação que hoje apóia Lula elegeu 6 governadores, na eleição de agora este número caiu para 5. Se acrescentarmos a eleição de Renan Filho (MDB) em 2018 ao bloco dos apoiadores de lula, a queda é ainda maior. Entre os que disputam o 2º turno, apenas 7 candidatos declaram apoio a Lula.  Na disputa para as assembléias estaduais, a coligação lulista, somada ao PDT, praticamente não cresceu, passando de 280 para 281 deputados (26%). Apesar do crescimento das bancadas do PT, que passou de 85 para 117 deputados, e do PSOL, cresceu de 18 para 22, as quedas de PC do B, PV, PSB e PDT compensaram negativamente este avanço.  Mesmo considerando que a maioria do voto lulista proveio das frações pior remuneradas e mais precarizadas do proletariado, por conta do caráter socialmente polarizado da atual eleição, ainda assim o voto proletário ficou aquém do esperado considerando o mito construído em torno da imagem de Lula junto às populações carentes, da tragédia bolsonarista e do agravamento da crise econômica e social.

Por fim, as forças políticas de centro-direita (MDB, PSDB, Cidadania, PSD, Novo) sofreram considerável derrota política, institucional e ideológica no atual pleito. Apesar de seus enormes recursos institucionais e do apoio orgânico de quase toda a burguesia não-bolsonarista, as forças deste campo não só não conseguiram emplacar uma candidatura unitária da “terceira via”, obtendo um resultado pífio na disputa presidencial com as candidaturas de Tebet (4,16%), Tronickle (0,51%) e D’Ávila (0,47%). Além disso, tiveram suas “franjas” galvanizadas pelo bolsonarismo, de um lado, ou pelo lulismo, de outro. Este fraco desempenho se reflete na disputa para o Congresso Nacional, os governos estaduais e assembléias legislativas. Na Câmara Federal este conjunto de forças caiu de 120 para 103 deputados (20% do total), enquanto no Senado caiu de 32 para 25 senadores (30% do total).  Entre os governadores eleitos em 1º turno estas forças elegeram 2 governadores em 2018 e agora elegeram 4. No entanto, tal como na última eleição, nenhum dos eleitos se compromete com os candidatos de seus próprios partidos, dividindo-se entre o apoio a Bolsonaro (1 em 2018, 3 agora) ou Haddad/Lula (1 em 2018, 1 agora).  Nas eleições para as assembléias legislativas esta tendência de queda se manteve, com todos os partidos deste campo somados elegendo não mais do que 247 deputados (23% do total), sendo que PSDB, Cidadania e Novo tiveram as maiores quedas.  Este desempenho evidencia não só a desidratação da “terceira via”, mas a própria fraqueza eleitoral da perspectiva de manutenção do golpe de 2016 no atual estágio da transição autoritária, ou seja, a combinação entre democracia restrita e neoliberalismo extremado. 


II- As táticas político-eleitorais.


A tática adotada pelo governo Bolsonaro e seus aliados foi a de combinar o uso e abuso dos recursos políticos e eleitorais disponibilizados pela máquina governamental, reforçados pelo ilegal “estado de emergência”, com a ameaça golpista, a violência política e o discurso antissistêmico, buscando falsificar a ira popular e legitimar sua perspectiva fascista. Além da manipulação dos preços dos combustíveis por meio da renúncia fiscal e do aparelhamento da Petrobrás, o governo ainda conseguiu aprovar o “orçamento secreto” e o “estado de emergência”, este com o apoio aberto ou velado do bloco no poder e a conivência pusilânime e oportunista de grande parte das forças de esquerda. Enquanto o “orçamento secreto” garante a compra de apoio parlamentar e a distribuição de recursos para as bases eleitorais de seus aliados sem qualquer controle público e fiscalização, dando margem à corrupção desenfreada, o “estado de emergência” permite a Bolsonaro e os militares brandir contra a institucionalidade política vigente com a ameaça de cancelamento das eleições e de um novo golpe em nome da “liberdade”. Esta agitação golpista confere uma espécie de salvo conduto para a violência política de seus apoiadores e o “voto de cabresto” exercido por empresários, pastores, milícias etc. Permite também a aprovação da “PEC das bondades”, com a concessão de benefícios assistencialistas com finalidades eleitoreiras explícitas que devem durar tão somente até o final do ano, mas cujo impacto eleitoral favorável ao bolsonarismo foi importante até aqui e tudo indica que também o será no 2º turno.  Esta combinação entre saturação autoritária da institucionalidade política e contestação reacionária da ordem explorou com êxito as possibilidades favoráveis à sua perspectiva fascista criadas pela ofensiva burguesa e pela própria transição autoritária. Também permitiu a Bolsonaro deter a iniciativa política, intimidar a oposição e dar confiança à sua base militante para ocupar a esfera pública (ruas, redes sociais e mídia) com agressividade, ganhar o voto útil antipetista e sensibilizar os indecisos.

Enquanto o bolsonarismo partiu para o enfrentamento e a radicalização como se fosse ele a oposição, a tática do lulismo operou nos marcos da ordem institucional e política com base na perspectiva de constituição de uma frente ampla que congregasse forças de esquerda e de direita, mesmo aquelas que patrocinaram o golpe de 2016 e apoiaram o governo Temer, mas tinham uma postura crítica ao bolsonarismo. Para tanto a campanha do lulismo buscou alianças e articulações “pelo alto” com partidos, forças políticas e lideranças de centro-direita, com a sociedade civil burguesa, com intelectuais, artistas e celebridades em nome do antibolsonarismo e da defesa do chamado “Estado democrático de direito”. Esta opção teve como corolário uma postura “quietista”, recusou-se em transformar o processo eleitoral num momento político privilegiado para a organização e mobilização dos trabalhadores explorando as próprias contradições sociais agravadas diariamente pela crise. De outro lado buscou-se exercer uma postura hegemonista sobre os movimentos sociais e demais forças de esquerda retomando a “chantagem do mal menor”, tantas vezes aqui descrita, ao procurar transformar as manifestações de rua em atos meramente eleitoreiros, bloquear o debate programático e pressionar pelo voto útil antibolsonarista. Neste sentido, a acomodação com “tudo o que está aí”, ou seja, com as medidas autoritárias e neoliberais adotadas desde o golpe de 2016 tornou-se incontornável, fazendo a candidatura comprometer-se com a mera atenuação das contrarreformas neoliberais ao mesmo tempo em que buscava capturar o imaginário popular brandindo a restauração da “era de Ouro” do lulopetismo (2005-2014), como se isso fosse possível.

Por sua vez as principais forças de centro-direita buscaram se posicionar como alternativa à polarização bolsonarismo/lulismo, garantindo a presença de ambos os contendores na disputa para emergir como opção de moderação, pacificação e “união nacional”. Ao mesmo tempo em que apoiaram a ressurreição política de Lula com a anulação de suas condenações e a restauração de seus direitos políticos, mantiveram o jogo “morde e assopra” com Bolsonaro esvaziando as pressões pelo seu impeachment e vitaminando sua candidatura ao conferir-lhe condições excepcionais, e ilegais, para a disputa eleitoral com a aprovação do “estado de emergência” e do “orçamento secreto”. Ou seja, para os partidos tradicionais do centro-direita e as principais frações do grande capital que representam politicamente, era preciso suscitar um cenário eleitoral de polarização que viabilizasse o “caminho do meio”. Buscando lançar candidatura própria e levar as eleições presidenciais para o segundo turno contra um ou outro, o eixo tático deste campo residiu na tentativa de capitalização do voto útil antibolsonarista ou antilulista para assim vencer as eleições. Porém as tentativas de constituição de uma candidatura de “terceira via” eleitoralmente competitiva naufragaram sucessivamente, apesar do apoio das frações mais aquinhoadas do bloco no poder e da grande mídia. Mesmo que tardio, o lançamento da candidatura Tebet não impediu o boicote de setores pertencentes aos partidos coligados, nem importantes defecções à direita e à esquerda, revelando que esta perspectiva política já havia sido ultrapassada pela própria dinâmica da crise brasileira. O compromisso nu e cru com o status quo criado pelo golpe de 2016 (democracia restrita e neoliberalismo extremado) mais uma vez mostrou sua fraqueza eleitoral na atual conjuntura, obrigando este campo e as frações que o apóiam a mudar de tática e usar seus recursos materiais e políticos para jogar com um pólo ou outro da disputa.


III - Correlação de forças e perspectivas.


Este cenário nos permite afirmar que apesar das contradições interburguesas, expressas na divisão entre bolsonaristas e não-bolsonaristas, no momento a correlação de forças é bastante favorável ao bloco no poder. Seja em sua versão “dura”, com Bolsonaro, seja em sua versão atenuada, com Lula, a dinâmica política saída das urnas aponta para a continuidade da ofensiva burguesa sobre os trabalhadores com a legitimação eleitoral da transição autoritária, das contrarreformas e da política econômica neoliberal desencadeadas a partir do golpe de 2016. A não ser que os trabalhadores iniciem já na atual disputa para o 2º turno sua contra-ofensiva e o processo de reversão destas tendências. 

As burguesias não-bolsonaristas, situadas nas mais altas capas do grande capital nacional e externo, se ressentem do desmonte dos mecanismos estatais de regulação das relações intercapitalistas promovido por Bolsonaro e recusam sua propositura fascista pelo que isso significa em termos de eliminação dos mecanismos transformistas de mediação do conflito social e político. No entanto, lhes interessa manter a ofensiva sobre os trabalhadores nos marcos atuais da transição autoritária, ou seja, preservar as contrarreformas (e avançar em outras), o tripé econômico neoliberal (superávit primário, regime de metas de inflação e cambio flutuante) e a democracia restrita, pois considera impossível eliminar os instrumentos políticos e corporativos de passivização da luta dos trabalhadores e as instâncias estatais de mediação dos conflitos interburgueses. Para tanto, estas frações tem se aproximado da candidatura Lula em nome da defesa do “Estado democrático de direito” com o propósito de lhe impor sua pauta político-econômica e ao mesmo tempo evitar a vitória de Bolsonaro. Caso vença Lula a chantagem sobre seu governo se estabelecerá desde o começo com o apoio da maioria de direita no Congresso Nacional, da grande mídia e das instituições “democráticas” como STF e MPF. Caso vença Bolsonaro estas frações pretendem continuar o jogo de “morde e assopra” por mais quatro anos, ou seja, tentando impor limites ao golpismo fascista e sua pauta cultural conservadora ao mesmo tempo em que apóia e se beneficia da “passagem da boiada”!

Para as burguesias bolsonaristas, localizadas entre as frações intermediárias do grande capital e que tem galgado posições no ranking das maiores empresas graças ao avanço da acumulação primitiva de capital, da mais-valia absoluta e da fascistização do Estado, interessa aprofundar a ofensiva sobre os trabalhadores por meio do endurecimento do regime político com Bolsonaro. Sua adesão ao fascismo bolsonarista é ditado não apenas por seus interesses econômicos imediatos, mas também por uma concepção de mundo politicamente reacionária e culturalmente conservadora. Caso vença Lula estas frações do capital também pretendem chantageá-lo por meio de sua presença no Congresso, nas instâncias fascistizadas do aparelho de Estado e na oposição de extrema-direita, para a defesa dos seus interesses específicos e para que não haja reversão nem criminalização do que foi conquistado com o desmonte bolsonarista.

Parte expressiva das chamadas classes médias tem funcionado como base de massas do antipetismo, particularmente do bolsonarismo. Apesar das pressões sobre seus rendimentos exercidas pela concentração capitalista, pelo neoliberalismo e pela própria crise econômico-social, na guerra de classes em curso no Brasil as classes médias se voltam contra os trabalhadores visando compensar suas perdas materiais e manter seus privilégios e prestígio social. Mesmo camadas mais baixas das classes médias demonstram uma adesão militante a uma perspectiva antidemocrática, antipopular e neoliberal extremada que as tornam fortemente influenciáveis pelo ideário fascista. Durante a campanha eleitoral esses setores sociais foram fundamentais para reavivar o antipetismo entre os setores populares, mobilizar o voto útil em Bolsonaro e garantir ao bolsonarismo o monopólio do espaço público (ruas, redes sociais) e a intimidação dos opositores. 

Os resultados eleitorais indicam que até o momento os trabalhadores não foram capazes de reverter parcialmente ou mesmo paralisar a ofensiva burguesa iniciada em 2016. O descalabro do governo Bolsonaro abriu esta possibilidade política tornando imperativa a luta pelo seu impeachment e pela sua derrota eleitoral, porém as forças que patrocinaram o golpe de 2016 de todas as vertentes são as grandes vitoriosas do pleito eleitoral e as vias de continuidade da ofensiva burguesa se colocam com muita força nos cenários futuros. Esta situação dramática se deve a diversos fatores estruturais, que os resultados eleitorais parecem ter confirmado, e a fatores conjunturais, específicos da atual disputa político-eleitoral. Apesar das intensas lutas sociais travadas desde 2013 pelas classes trabalhadoras e intensificadas após o golpe, é forçoso reconhecer que nos últimos anos houve um recuo político e organizativo, com a prevalência de uma perspectiva defensiva, principalmente devido às mudanças causadas pela reforma trabalhista (estrangulamento financeiro dos sindicatos, esvaziamento da justiça do trabalho), à postura institucionalista das principais organizações políticas e sociais do mundo do trabalho e ao próprio agravamento da crise econômico-social. Além disso, há um processo de submissão ideológica de segmentos expressivos das classes trabalhadoras ao empreendedorismo, ao fundamentalismo religioso e/ou ao messianismo/personalismo de direita ou de esquerda, criando uma perspectiva de ascensão social que passa pelo esforço individual, pela graça divina ou pela estatolatria, não pela luta política e social. Estes elementos se devem à força do conservadorismo cultural e da relação estatolatra que as principais lideranças políticas do país estabelecem com as demandas populares (Lula e Bolsonaro incluídos), mas também em grande medida devido às novas determinações impostas à relação capital/trabalho pela dinâmica capitalista recente. 

Avançamos aqui a hipótese de trabalho, que necessita de pesquisa mais aprofundada, de que anos de rebaixamento do salário-mínimo, precarização das relações de trabalho, enfraquecimento dos sindicatos, desmonte da justiça do trabalho e elevação dos custos previdenciários e tributários embutidos na formalização do contrato de trabalho tiveram o efeito de tornar partes das classes trabalhadoras relativamente alheias à defesa dos direitos sociais e trabalhistas, pauta tradicional dos movimentos sociais e das organizações de esquerda. Isto porque, para determinados segmentos proletários precarizados, que trabalham por conta própria ou que vendem a força de trabalho sem contrato formal, a formalização implica custos elevados e de retorno incerto (previdência e Imposto de Renda) que podem variar entre 20% e 30% dos seus rendimentos. Além disso, não garante o respeito aos direitos trabalhistas, por conta da fraqueza dos sindicatos e dos altos custos e da inoperância da justiça do trabalho; e ainda por cima tem no salário mínimo (que funciona como teto salarial, não como piso) a baliza fundamental na definição de sua remuneração salarial. Se somarmos a estes fatores a tradicional recusa proletária à exploração capitalista direta e à submissão aos rigores da jornada de trabalho, somada à ilusão de que as dificuldades financeiras podem ser compensadas pelo esforço individual, tem-se um quadro que pode explicar o encanto exercido pela ideologia do empreendedorismo sobre parte dos trabalhadores, sua adesão passiva ao ideário neoliberal e rendição a um imaginário presentista e imediatista, carente de futuro e alternativas. No plano político e social este componente ideológico, somado ao fundamentalismo religioso e à perspectiva messiânica/personalista que levantamos anteriormente, torna segmentos das classes trabalhadoras bastante refratários a qualquer perspectiva de organização coletiva e mobilização social. Esta situação talvez possa explicar a forte presença do voto bolsonarista entre os trabalhadores que ganham entre dois e dez salários-mínimos, como indicam as pesquisas eleitorais. 

Por outro lado, para além destes fatores de médio prazo, é preciso considerar também os elementos da conjuntura, particularmente o comportamento institucionalista e eleitoreiro das principais organizações do mundo do trabalho, imantadas em torno do lulismo. Desde que Lula teve restituídos seus direitos políticos e voltou à cena política como principal opositor de Bolsonaro, o comportamento do arco de forças políticas e sociais liderado pelo PT foi o de contemporizar com o descalabro governamental e os crimes presidenciais e apostar em sua presença na disputa eleitoral pelas razões que já apontamos. Isto se evidencia em diversos momentos, como no esfriamento da mobilização pelo impeachment; na insistência em apostar numa “normalidade institucional” completamente esgarçada e vilipendiada pelas próprias instituições responsáveis por sua defesa; na conivência oportunista com a aprovação do “estado de emergência” e da “PEC das bondades”, entre outros. Além disso, a realização progressiva da perspectiva de constituição de uma frente ampla com setores da direita que patrocinaram o golpe de 2016 e se atrelam à perspectiva de manutenção da ofensiva burguesa sobre os trabalhadores, fez com que a via institucionalista das “articulações pelo alto” substituísse a necessária mobilização popular, tornando os sindicatos, movimentos sociais e as outras organizações de esquerda em mero apêndice da “grande aliança”. Fez ainda com que o debate programático acerca da reversão da transição autoritária, das contrarreformas e da política econômica neoliberal fosse bloqueado em favor do compromisso com modificações pontuais aqui e acolá. A defesa acrítica do “Estado democrático de direito” sem qualquer referência à transição autoritária e à fascistização do aparelho de Estado, coroa o equívoco desta linha de restauração da política de “conciliação de classes”. Isto porque, além de ser um tema completamente abstrato para a maioria da população e não condizer em absoluto com a realidade politica e institucional do país desde o golpe de 2016 revela-se acomodatício com a perspectiva burguesa de manutenção da ofensiva sobre os trabalhadores. 

  Finalmente, também é preciso considerar a falência da perspectiva de constituição de uma frente de esquerda entre os setores classistas e socialistas das organizações de esquerda, sindicatos e movimentos sociais em torno de um programa de conteúdo antiimperiaista, antineoliberal, democrático e anticapitalista. Apesar de determinados esforços no sentido da formação de uma coligação eleitoral e de uma frente conjunta de lutas, prevaleceram o imperativo da sobrevivência imposto pela legislação eleitoral, a aposta no auto-fortalecimento e a fragmentação, com parte destes setores aderindo ao lulismo, enquanto outros partiam para candidatura própria.


IV- Entre o possível e o necessário.


Caso seja verdadeira a situação descrita acima e correta a avaliação política sobre ela, é possível afirmar que a crise brasileira atingiu um novo estágio, que tende a colapsar o “caminho do meio”, ou seja, a manutenção da ofensiva burguesa sobre os trabalhadores nos marcos atuais da democracia restrita, das contrarreformas e da política econômica neoliberal. Sua atenuação com mudanças pontuais em determinados aspectos da institucionalidade política, das relações capital/trabalho e das relações Estado/capital pode se configurar como mais um estelionato eleitoral, de efeitos tremendamente danosos para toda a esquerda, pois não devem trazer estabilidade política, nem certa acomodação entre as classes na disputa pela renda social. A guerra de classes deve continuar, tanto entre capital e trabalho, quanto no plano intercapitalista, colocando o endurecimento político de caráter fascista como uma ameaça real no próximo período.

Nenhuma destas alternativas interessa aos trabalhadores, mesmo aqueles imantados pelo empreendedorismo, pelo fundamentalismo religioso ou pelo messianismo/personalismo fascista. Ao contrario, a superação da crise brasileira e o enfrentamento da ofensiva burguesa passam não apenas pela reversão das medidas políticas e econômicas em curso desde o golpe de 2016, mas pela ampliação antiautocrática das liberdades democráticas e dos direitos sociais e trabalhistas, pela melhoria real da renda salarial, pelo estabelecimento de controles efetivos sobre a movimentação do capital e pelo controle dos trabalhadores sobre os recursos e bens públicos. Portanto, não se trata de restaurar a democracia de cooptação da Nova República, nem a combinação entre neoliberalismo moderado, políticas sociais compensatórias e conciliação de classes, que marcaram a “Era de Ouro” do lulismo. Trata-se de colocar a perspectiva socialista como a única alternativa efetiva à barbárie fascista e de estabelecer as mediações políticas para sua efetivação.

Por isso, no atual momento a tarefa incontornável do movimento dos trabalhadores e de toda a esquerda, mas particularmente da esquerda socialista, é derrotar Bolsonaro e sua perspectiva fascista e criar as condições para derrotar a ofensiva burguesa no próximo período. Eleger Lula no segundo turno coloca-se como tarefa emergencial, mas não suficiente, pois em caso de vitória seu governo pode ser capturado pela perspectiva burguesa de legitimação da pauta política e econômica do golpe de 2016 e pela continuidade da ofensiva contra os trabalhadores. Neste sentido, a mobilização política e eleitoral dos trabalhadores nesta reta final das eleições é fundamental para enfrentar a onda bolsonarista em curso e sua combinação entre saturação autoritária da institucionalidade política e contestação reacionária da ordem. A constituição de comitês Fora Bolsonaro/Lula Presidente que promovam atos, panfletagens, a ocupação visual e mobilizatória das ruas e redes sociais, o convencimento político dos eleitores, etc., é um tarefa inadiável e deve ser realizada com toda energia, coragem e determinação. Também é preciso politizar a indignação dos trabalhadores, da juventude, das mulheres, dos negros, dos indígenas contra a superexploração, as péssimas condições de vida e trabalho, a repressão política e policial, o machismo, a escalada feminicida, o racismo e a destruição do meio ambiente, num trabalho de base ao mesmo tempo imediato e permanente.

No entanto, a atual campanha política e de mobilização não deve se encerrar terminadas as eleições, pois em caso de vitória, além do risco de novo golpe entre o segundo turno e a posse de Lula, é preciso transformar os comitês eleitorais em instâncias permanentes de mobilização e organização. Instâncias que funcionem como espaço de articulação da frente de esquerda e que permitam aos trabalhadores recuperar sua autonomia de classe, romper com a chantagem do “mal menor” e manter um pólo ativo de resistência política e social contra qualquer novo “estelionato eleitoral”. Sem a retomada da organização de base e da mobilização de massas a vitória eleitoral dos trabalhadores pode se transformar numa nova derrota política!


 ESCOLA DE FORMAÇÃO SOCIALISTA