Módulo II - Revolução e Contra-Revolução na Alemanha | Guilherme Martins

 

Apresentação de Revolução e Contrarrevolução na Alemanha,

de Friedrich Engels

 Guilherme Martes Martins

 

Introdução

O livro Revolução e Contrarrevolução na Alemanha[1] é uma compilação de artigos escritos por Friedrich Engels com auxílio de Karl Marx para o jornal New York Daily Tribune, entre 1851 e 1852, nos quais o autor se propôs a retratar o contexto que possibilitou as Revoluções de 1848-9, com enfoque especial na região da Europa Central durante o período histórico imediatamente posterior à Primavera dos Povos, e a desvelar a mecânica dos acontecimentos, avançando na tentativa de compreender por que tais processos fracassaram – sob a ótica dos interesses do proletariado – e quais foram as consequências de tal fracasso. Utilizando como ponto de partida a análise econômica e sociopolítica da região da atual Alemanha e Áustria, Engels ampliou o escopo e buscou compreender de que forma as relações entre distintas nações e nacionalidades existentes na Europa alteraram o rumo dos fatos ocorridos na região alemã.

Escritos em uma situação adversa – Marx e Engels encontravam-se exilados na Inglaterra, após terem participado ativamente das agitações revolucionárias de 1848-9 na Renânia, Alemanha, as quais, após derrotadas, provocaram a fuga de ambos –, esses artigos demonstram que o método analítico fundado por Marx e Engels já se encontrava elaborado em suas linhas gerais. Isso porque as análises de conjuntura realizadas por ambos no início da década de 1850 demonstravam desde então a articulação de três conceitos fundamentais para os autores: totalidade, contradição e mediação.

Ao conseguirem aplicar sua metodologia à análise de situações reais, Marx e Engels deram desdobramentos práticos à 11ª tese sobre Feuerbach, formulada por Marx em 1845: “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Desvelar os fenômenos sociais é parte intrínseca do processo de (re)conhecimento da realidade que, ao conseguir ser traduzido para a ação “prática” político-programática (portanto ético-política), se torna o fundamento para o desenvolvimento da consciência política enquanto classe para si[2] e, consequentemente, da transformação qualitativa radical de sua prática sócio-política.

Os artigos que compõem Revolução e Contrarrevolução na Alemanha são parte desse momento no qual a capacidade de interpretar a realidade associada a uma nova e radical concepção ético-política proletária tornou possível a expressão de uma nova prática política coletiva, ao menos em sua expressão embrionária. Isso se deve ao fato de que, ainda que diversas características do pensamento marxista recém-inaugurado só venham a ser desenvolvidas consequentemente por Lênin (sob condições bem distintas das vivenciadas por Marx e Engels) na virada do século, a defesa por parte de Marx e Engels da forma partido, da centralidade político-programática, da imperativa independência e autonomia da classe trabalhadora e de sua necessária hegemonia está explícita, por exemplo, já no Manifesto Comunista, publicado em fevereiro de 1848, no início da explosão de agitações sociais e populares[3] e, sob outra forma, faz-se presente também no livro que aqui debatemos.


A contrarrevolução burguesa

Abordando a obra sob uma perspectiva de maior amplitude histórica, podemos dizer que ela se encaixa no período de desenvolvimento de transformações radicais ocorridas no continente europeu a partir da eclosão da Revolução Francesa em 1789. O processo de luta pelo poder político, econômico, social e cultural entre a burguesia e a aristocracia (que em algumas regiões da Europa ainda era feudal) desencadeou modificações estruturais nas sociedades das diversas nações europeias, seja a partir das reordenações sócio-político-culturais operadas pela burguesia francesa durante seu processo de consolidação e expansão continental[4], seja posteriormente, quando a reação aristocrática[5] conseguiu capitanear a disputa política em diversas regiões europeias, cooptando as frações burguesas sob programas de modernização conservadora nacionais, como ocorreu na França, na Alemanha e na Áustria, entre outros.

A derrota de Napoleão na Batalha de Waterloo, em 1815, marcou a derrota da ascensão da hegemonia francesa e suas ambições de disseminação de um projeto burguês-liberal na Europa Continental. As forças que compunham a reação, a coalizão reacionária aristocrática-feudal, haviam conseguido derrotar a ascensão burguesa que já dominava grande parte da Europa, em regiões tão distintas quanto Portugal e o Leste Europeu. Contudo, a derrota do projeto francês não significou o declínio da influência burguesa, na medida em que fortaleceu outro projeto burguês que se desenvolvia na Inglaterra, onde a burguesia havia pactuado com setores aristocráticos ainda na Revolução Gloriosa de 1688, quando ocorreu a ascensão de Guilherme de Orange ao trono inglês mediante uma aliança burgo-aristocrática.

Ainda em 1815 foi formalizada a Santa Aliança[6], que realizaria no mesmo ano o Congresso de Viena, com o intuito de centralizar a reação aristocrática (e em regiões como “Alemanha”, Áustria e Rússia, até mesmo feudal) na busca pela retomada de sua hegemonia na Europa Continental.

Redefinindo governos e governantes nos territórios anteriormente ocupados pelos francesas, os reinos, ducados e impérios instituídos pelo Congresso de Viena foram tomando as formas de “monarquias constitucionais”, nas quais tanto nobres quanto burgueses se viam na possibilidade de orientar o Estado e manter seu espaço privilegiado na política, ainda que, para isso, fosse preciso ceder algum espaço político às massas populares da cidade e do campo em câmaras de representação, como as Dietas Germânicas.

A radicalidade francesa se contrapunha ao pacto burgo-aristocrático inglês. Cumprindo o papel de um intelectual orgânico do Bloco Histórico, em 1821, Hegel defendeu a monarquia constitucional (expressão do referido pacto no campo das superestruturas) como a forma perfeita de governo, espécie de “fim da história”, capaz de eliminar as contradições sociais ao unificar governo monárquico e câmaras legislativas por intermédio da aplicação de uma legislação universal a casos particulares, sem a necessidade da onda avassaladora de violência causada pela Revolução Francesa ou por aventureiros como Oliver Cromwell.

Na Europa Central, o Sacro Império Romano Germânico existente desde a Idade Média foi dissolvido pela ocupação napoleônica. Depois de 1815, a Santa Aliança fez emergir na região a Confederação Germânica, composta por 39 regiões políticas autônomas, entre reinos, ducados e cidades independentes. Diversas dessas regiões tornaram-se monarquias constitucionais durante a primeira metade do século XIX, por meio das lutas entre burguesia e camadas populares contra a aristocracia feudal.

As contradições entre a breve implementação de um regime burguês e o recente retorno a um regime aristocrático (e mesmo feudal) provocaram grande agitação política. Na França, os crescentes tensionamentos resultantes dessa intestina luta entre nobreza e burguesia pela hegemonia levariam à chamada Revolução de 1830, na qual a burguesia se congregou à pequena burguesia e a setores da classe trabalhadora e capitaneou o avanço contra a reação, buscando impor novamente seu projeto liberal. Apesar da vitória, levada à cabo pela capacidade de ação da pequena burguesia e do proletariado urbano, o setor burguês mais à frente do processo, a burguesia financeira, traiu seus aliados menos poderosos, uniu-se a setores aristocráticos vinculados ao setor financeiro e interrompeu as transformações sociais em andamento para que não “fugissem” à ordem burguesa recém-instalada.

Os acontecimentos de julho de 1830 marcaram, portanto, o último momento no qual a burguesia enquanto classe se aliou à pequena burguesia (lojistas, artesãos) e a setores da classe trabalhadora (como jornaleiros e assalariados de oficinas) para a implementação de um projeto liberal em contraposição à aristocracia. Revolução e Contrarrevolução na Alemanha trata do período subsequente a esses acontecimentos, no qual revolução burguesa e reação aristocrático-feudal veem emergir no cenário político um novo ator social advindo das contradições do combate entre ambas: o proletariado.

 

O surgimento do proletariado na arena política

Os primeiros vinte anos do século XIX foram um período de grande desenvolvimento político por parte da classe trabalhadora. Se a segunda metade do século XVIII foi marcada pela revolta contra as máquinas expressada pelo movimento ludista – que tinha a violência de massa[7] enquanto fim, na busca por apenas interromper a carnificina à qual estavam sujeitos –, foi no início do século XIX que o proletariado desenvolveu modos de atuação política mais eficazes.

Somente com o surgimento do movimento cartista já na primeira década do século XIX que a classe trabalhadora começaria a reconhecer-se enquanto classe em si, ou seja, enquanto parte de um conjunto de pessoas sobre as quais incidem as mesmas formas de relações sociais de exploração, opressão e alienação. Em decorrência dessa compreensão, frações da classe começaram a se organizar e a formular um programa mínimo de reivindicações[8], realizando lutas e mobilizações em prol de direitos fundamentais a todas as trabalhadoras e trabalhadores, como a eliminação do trabalho infantil e a delimitação de um período máximo de horas de trabalho por dia[9].

Nesse conturbado cenário, a produção intelectual expressava as contradições sociais. Na Alemanha, por exemplo, onde o hegelianismo “mais conservador” se tornou uma política de Estado, a intelectualidade que ousasse se contrapor ao governo e à filosofia hegeliana, terminava presa ou exilada. Assim, formaram-se grupos de exilados em países como França, Inglaterra e Países Baixos. Aglutinados em uma região, esses grupos debatiam e contrapunham suas leituras da realidade, alvidrando formas de como seria possível transformá-la radicalmente. Nascia, pois, a perspectiva socialista, em sua forma embrionária, mais primitiva, vinculada a concepções utópicas. Seus expoentes, como Saint Simon e Fourier, desenvolviam uma perspectiva política filosófica incompleta, baseada no idealismo, haja vista que não compreendiam as causas da miséria do proletariado e, assim, colocavam na ação individual, nos falanstérios, nas comunidades “isoladas” a única via para uma outra sociedade.

Por outro lado, mesmo aqueles que conseguiam superar o utopismo pacifista, como o revolucionário alemão Wilhelm Weitling (1808-1871), não conseguiam ainda superar as mistificações sobre o que era a revolução e quem era o “sujeito revolucionário”[10]. Da mesma forma, Pierre Joseph-Proudhon (1809-1865) também encerrava fortes limitações em sua teorização, ao defender, por exemplo,  que a propriedade privada deveria assumir centralidade nas reivindicações da pequena burguesia e das/os trabalhadoras/es vinculadas/os a estruturas artesanais, visto que, na perspectiva proudhoniana, o proletariado era praticamente ignorado. Ainda assim, Marx e Engels, que nutriam profundas discordâncias com todos os revolucionários supracitados, integraram frentes de atuação conjunta, no intuito de disputar politicamente a consciência da vanguarda operária europeia.

            Assim, foram criadas durante essa época diversas instâncias organizativas como as Sociedades de Educação Operária e a Liga dos Justos, posteriormente denominada Liga dos Comunistas. Nesses espaços, Marx e Engels conseguiram gradualmente afirmar uma determinada hegemonia, sendo deliberado, por exemplo, no final de 1847, que Marx ficasse responsável pela redação de um panfleto que deveria explicar de forma didática o que era o comunismo: nascia, assim, o Manifesto, em 1848.

 

A relevância da obra

A análise econômica e sociopolítica realizada por Engels demonstrou robustez, ao conseguir compor uma leitura capaz de contemplar a sociedade alemã, prussiana e austríaca em sua diversidade e multiplicidade, em uma primorosa busca por abarcar a totalidade das relações sócio-econômico-político-culturais estabelecidas na região e por averiguar como tais relações se interligam com aquelas compostas com outras classes de outros países e nacionalidades europeias. Engels também mostrou sensibilidade ao ser capaz de compreender como os interesses gerais, de abrangência histórica de médio e longo prazo, das classes sociais são expressos na atuação conjuntural de tais classes, em sua ação de curto prazo, demonstrando conseguir mediar os pontos universais com os pontos específicos. Concomitantemente, as considerações apresentadas pelo autor revelaram grande destreza ao captarem as diversas contradições que se desenvolvem nessa sociedade.

Abarcando os contrastes presentes na conjuntura histórica estudada, o autor não apenas conseguiu identificar os contrapontos colocados entre as classes sociais presentes na região, como também extrapolou a análise do momento mais imediato relativo aos processos de 1848-9, a ponto de dimensionar tais contradições na própria lógica das tarefas históricas colocadas à burguesia e ao proletariado. A Primavera dos Povos determinaria um momento de virada das tarefas históricas burguesas e, consequentemente, proletárias.

Assim, verificamos que, para Engels e Marx, a tríade fundamental (constituída pelas categorias de totalidade, contradição e mediação) que compõe o método analítico por ambos desenvolvido já se expressava em seus pensamentos, de modo que atestaram a potência desse método ao, aplicando-o na leitura da realidade, conseguirem romper a superfície e alcançar o cerne dos fenômenos sociais analisados, desvelando uma forma de conhecer o mundo que propicia compreender o “quem, como e porquê" dos fatos.

            Ao conseguir destrinchar os acontecimentos e compreender os vetores de interesse e possibilidades que levaram as classes sociais a se movimentarem da forma como fizeram, Engels também jogou luz sobre possibilidades de superação do impasse sob o qual se encontrava a classe trabalhadora em seu estágio de construção histórico-social, enquanto contingente social, organização política e sedimentação ideológica, sobretudo a alemã (mas não apenas ela).

            Ao identificar a transformação do caráter da ação burguesa, que a partir desse momento se tornaria cada vez mais contrarrevolucionária, conservadora e até reacionária, Engels acabou por atribuir ao proletariado a tarefa da transformação radical, da ampliação permanente da “democracia política” substantiva, da independência e da autonomia da classe trabalhadora. O proletariado, então, torna-se o vetor das transformações sociais não apenas desejadas, mas necessárias ao desenvolvimento das forças produtivas, da ciência e da filosofia[11] e de uma nova materialização ético-política.

            Essa constatação de Engels não ocorreu sem outras repercussões. Ao deparar-se com as tarefas históricas do proletariado, o autor também constatou a imperatividade de um programa político condizente com as propostas desse proletariado – programa vinculado a determinadas tarefas políticas no campo da hegemonia política, social e cultural para a tomada de poder. Em outras palavras, ao colocar ao proletariado a tarefa de capitanear seu processo de emancipação, incumbiu-o também de construir sua ação sob o signo da autonomia e da independência de classe, desvinculando-se das amarras limitantes impostas pela tutela burguesa.

            Por conseguinte, a autonomia e a independência da ação proletária em seu processo de emancipação demanda igualmente a constituição de uma nova práxis político-organizativa, que consiga dar vazão ao projeto de hegemonia operária. Às/aos exploradas/os que se propõem a subverter a recém-instalada ordem burguesa cabe a tarefa de refletir sobre todo e qualquer método de ação, sobre toda e qualquer tática adotada, tendo em vista que o resultado de ações mal-sucedidas podem ser fatais à organização revolucionária, como o período de reação inaugurado com a derrota de 1849 demonstraria.

 

 

BIBLIOGRAFIA

ABENDROTH, Wolfgang. A História Social do Movimento Trabalhista Europeu. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1977.

BOGO, Ademar (org.). Teoria da Organização Política, vol. 4: escritos de Gramsci, Guevara, Florestan Fernandes, Engels, Marx, Mao, Lenin e Giap. Expressão Popular: São Paulo, 2013.

COUTINHO, Carlos Nelson. O Estruturalismo e a Miséria da Razão.  Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1972.

ENGELS, Friedrich. Nova gazeta renana. Trad. Lívia Cotrim. São Paulo: Expressão Popular, 2020,

ENGELS, Friedrich. Revolução antes da Revolução. Expressão Popular: São Paulo, 2010.

MARX, Karl. O Capital, vol. 1.  Boitempo: São Paulo, 2017.

MASCARO, Alysson Leandro et al. Curso livre Engels: vida e obra. Boitempo: São Paulo, 2021.

RIAZANOV, David. Marx e Engels. Edições Nova Cultura: São Paulo, 2016.

 

 

 

 

 

 

 



[1] Utilizamos aqui a 2ª edição impressa pela editora Expressão Popular em 2010. O texto também pode ser lido no site marxists.org, por meio do link:

 https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/revolucao/index.htm

[2] Ao processo descrito nessa sentença damos o nome de Educação Popular.

[3] Contudo, o Manifesto não teve influência imediata no movimento revolucionário que eclodiu.

[4] Nas Guerras Revolucionárias de 1789 a 1802 e nas Guerras Napoleônicas entre 1803 e 1815.

[5] Desencadeada com maior vigor a partir do Congresso de Viena e a formação da Santa Aliança, ambos em 1815.

[6] Composta pelo Império Austríaco, pelo Império Russo e pelo Reino Prussiano.

[7] Contrapomos aqui a violência de massa, espontânea, anômica, mecânica, à violência autônoma, expressa como resultado de uma determinada práxis histórica de construção de autonomia e independência por parte da classe trabalhadora. Contudo, por não ser o objetivo de análise do presente texto, não nos aprofundaremos nas conexões e nas diferenças entre ambas.

[8] A trajetória de organização do movimento de trabalhadoras e trabalhadores europeu até a primeira metade do século XIX pode ser acompanhada no capítulo 1 - Dos primórdios do movimento trabalhista europeu até a derrota da revolução de 1848, no livro A História Social do Movimento Trabalhista Europeu, de Wolfgang Abendroth.

[9] Uma exposição sobre o desenvolvimento dessas lutas e suas repercussões no campo jurídico e de regulamentação estatal do trabalho encontram-se em O Capital, vol. 1, capítulo 8 - A jornada de trabalho.

[10] Para Weitling, por exemplo, o sujeito revolucionário só poderia ser o lumpemproletariado, e a fraseologia sobre a revolução era muitas vezes apoiada em um messianismo salvacionista.

[11] Como muito bem aponta Carlos Nelson Coutinho no primeiro capítulo de seu livro Estruturalismo e a Miséria da Razão.