Análise da Conjuntura Político-Institucional Brasileira nº 002/2018

Consolidado no mês de julho de 2018.

1- Nas últimas semanas ocorreu um processo de reacomodação no quadro político brasileiro, que tende a se manter pelos próximos meses. A greve dos caminhoneiros e a greve dos petroleiros revelaram tendências que já vinham se configurando e que se consolidaram desde então.

2- Em primeiro lugar, revelou-se evidente a falência do governo Temer, sua incapacidade de dirigir o bloco no poder e encaminhar o que falta da agenda neoliberal extremada. Desde a decretação da intervenção militar no RJ e do abandono da tentativa de aprovação da Reforma da Previdência o governo já expunha à luz do dia sua debilidade política. A greve dos caminhoneiros expôs as entranhas de um governo falido e incapaz de governar: a) quando fracassou sua tentativa de mobilizar os militares na repressão a uma greve que contou com enorme apoio popular; b) quando fracassou o acordo feito com as transportadoras e com algumas lideranças dos caminhoneiros; c) quando o governo teve que fazer concessões que iam na contramão da política de liberação de preços dos combustíveis adotada desde o golpe. Na greve dos petroleiros isso ficou ainda mais evidente, com o governo tendo que apelar para o judiciário com o fito de criminalizar a greve e derrotar o movimento. A impopularidade do governo e o baixíssimo índice de intenção de votos de seu candidato presidencial apenas reforçam essa realidade.



3- Em segundo lugar, a perspectiva de solução da crise política por meio de uma intervenção militar e do estabelecimento do cesarismo militar parece descartada, pelo menos momentaneamente. Isto porque a greve dos caminhoneiros suscitou o clamor de diversos setores sociais por uma intervenção militar “regeneradora”, criando as condições para a legitimação de tal empreitada. No entanto, a postura majoritária do bloco no poder e dos próprios militares foi de recusa de tal solução para a crise política por conta do alto risco da empreitada e da possibilidade real da resistência popular ao golpe ser bem sucedida, abrindo um período de crise revolucionária; seja por conta das contradições entre os interesses corporativos dos militares e a agenda neoliberal extremada, ou pelas próprias dificuldades operacionais de implantação de uma ditadura militar (contingente militar insuficiente; sociedade civil do mundo do trabalho plural, ampliada e nacionalizada, etc.).

4- Diante desse cenário, a opção preferencial do bloco no poder para consumar o golpe e legitimar a sua agenda neoliberal extremada passa pela manutenção das eleições presidenciais sem a presença de Lula, pela viabilização de uma candidatura orgânica do campo golpista e pela recomposição do sistema de representação política com base na atual estrutura partidária. A primeira condição parece consolidada, como indicam as recentes manobras do TRF-4 e do STF (não acatamento do recurso da defesa de Lula pela segunda turma do STF, não julgamento das ações declaratórias que proibiriam a prisão em segunda instância, etc.) para prorrogar a prisão ilegal de Lula até pelo menos a realização do segundo turno. Todavia, a segunda condição convive com enormes dificuldades, devido à orientação predominantemente antineoliberal do voto popular, ao baixíssimo desempenho em intenção de voto dos candidatos mais afinados com a agenda neoliberal extremada e confiáveis para o bloco no poder (Geraldo Alckmin, Henrique Meireles, Álvaro Dias, etc.) e mesmo daqueles que pretensamente representariam o “novo” (Flávio Rocha, João Amoêdo), e ao fato incontornável de que mesmo preso Lula lidera com folga as pesquisas de intenção de voto, demonstrando ainda capacidade suficiente de transferência de votos para colocar um outro candidato petista no segundo turno.

5- Essa situação tem motivado propostas de unificação dos setores de centro-direita em torno de uma candidatura única, que fosse uma alternativa tanto à extrema-direita (Bolsonaro), quanto à esquerda (lulopetismo ou Ciro Gomes). Principalmente no PSDB e no MDB existem setores que propõe que os referidos partidos abram mão de suas candidaturas em torno de uma candidatura de consenso neste campo. Recentemente próceres do PSDB (principalmente FHC e serristas como Goldmann), do MDB, do PSB, do PSD, do PPS e do PSB se reuniram em São Paulo defendendo uma candidatura ao mesmo tempo alternativa ao bolsonarismo e ao lulopetismo, consideradas posições extremadas, que acirram a crise política, ao invés de resolvê-la. O encontro deu a senha do que deve ser o discurso da(s) candidatura(s) de centro-direita: defesa da democracia e da suposta ordem legal; e contra o extremismo fascistóide e a irresponsabilidade populista. Ou seja, nada sobre o programa neoliberal extremado que vão aplicar caso ganhem (Reforma da Previdência, privatização da Petrobrás, da Eletrobrás, da Caixa Econômica Federal, entrega do pré-sal, etc.) e tudo sobre responsabilidade gerencial, solidez partidária e institucional, segurança pública, criação de ambiente político favorável aos negócios e ao crescimento econômico, etc. Em termos institucionais a aposta é na refundação do sistema de representação política com base no reagrupamento do atual sistema partidário em torno de três grandes “partidos” (o proto-fascismo, o centro-direita e o lulopetismo) e na restrição/exclusão do espaço da esquerda socialista.

6- Neste sentido, mantidas as eleições, deverá haver um aumento significativo da participação da extrema direita na disputa eleitoral, com o crescimento de candidaturas de militares e setores reacionários, além do maior envolvimento do crime organizado e das milícias na própria campanha. O que expressa não só o crescimento ainda mais expressivo da bancada conservadora no legislativo e o avanço político e ideológico do protofascismo na atual conjuntura, mas também o maior peso do tráfico e das atividades criminosas numa economia em processo avançado de informalização e precarização do trabalho. Além disso, tais organizações criminosas podem ocupar um papel político importante no atual regime de democracia hiper-restrita, como um braço repressivo paralelo ao Estado no combate aos movimentos sociais e à esquerda socialista.

7- A dificuldade para o encaminhamento da unificação eleitoral do centro-direita reside no fato de que este campo agrega os mais variados interesses eleitorais e partidários, muitas vezes conflitantes e concorrentes nos planos nacional, regional e local. Pra começar, apesar de baixíssima popularidade e da condição de “peso” eleitoral, o governo Temer só apoiará com seus recursos institucionais o candidato que se comprometer em usar sua força política para esvaziar as investigações e sufocar as denúncias contra o atual presidente e seus principais colaboradores, o que se configura um compromisso altamente desairoso. Também é preciso considerar que se no plano da chapa presidencial pode haver unificação, na disputa para governadores e para senadores e deputados federais a rivalidade entre PSDB e MDB é intensa, pois disputam na mesma faixa política e possuem pretensões e capacidades idênticas em termos de controle de cargos, orçamentos e verbas públicas no aparelho de Estado. Além disso, os partidos menores que podem compor a aliança temem desaparecer ou reduzir drasticamente sua inserção institucional diante do gigantismo do PSDB, do MDB e do PFL/DEM. Esses fatores tendem a dificultar a unificação e manter a miríade de candidatos hoje apresentados nesse campo (Geraldo Alckmin, Henrique Meireles, Rodrigo Maia, Marina Silva, Álvaro Dias, Aldo Rebelo, Cristovam Buarque, José Maria Eymael, Levi Fidelix, João Amoêdo, Flávio Rocha) ou reduzi-los apenas parcialmente. A tentativa de construção da candidatura alternativa, descolada da bipolarização estabelecida no momento – ao mesmo tempo aceita por essas forças por ser um membro reconhecido do sistema de representação política ou do establishment, porém ainda ausente das investigações da LavaJato e, portanto, capaz de se apresentar como alguém que regenera a ação política – convive com a dificuldade de se encontrar esse nome e com o pouco tempo para torná-lo visível à massa do eleitorado.

8- Por conta destas dificuldades, tanto Bolsonaro, na extrema direita, quanto Ciro Gomes, na esquerda neoliberal moderada, tentam ocupar esse campo, se aproximando do centro-direita e tentando atrair apoios. Bolsonaro tem renegado seu passado nacional-estatista de verniz militar defendendo a primazia do mercado sobre o Estado e o núcleo duro do projeto neoliberal extremado, enquanto Ciro Gomes não só tenta atrair o nome de algum grande empresário para sua chapa (Benjamin Steinbruch ou Josué Gomes) e/ou conquistar a adesão do DEM/PFL à sua candidatura, como busca se apresentar como alguém confiável ao mercado, responsável do ponto de vista fiscal (o que significa submeter a política de gastos públicos ao imperativo do equilíbrio fiscal) e comprometido com a eficiência gerencial, o que no debate público tem significado controle patrimonial privado, não estatal, de serviços e empresas públicas.

9- Caso a unificação do centro-direita em torno de uma candidatura viável não se realize, ou o candidato escolhido não apresente viabilidade eleitoral, a perspectiva de apoio às candidaturas Bolsonaro ou Ciro Gomes se coloca como alternativa, dependendo também da capacidade de cada um dos candidatos obter legitimidade política por meio das eleições; capacidade de vencer o lulopetismo e/ou aceitar o núcleo duro da plataforma neoliberal extremada (Reforma da Previdência, privatização direta ou indireta das empresas estatais e regulamentação da reforma trabalhista). Se de um lado Bolsonaro é mais facilmente cooptável por conta de sua debilidade político-institucional e do caráter inorgânico de sua plataforma política em relação à tendência histórica do capitalismo brasileiro (integração subordinada de negros, mulheres e minorias no mercado e no sistema político-institucional), por outro lado Ciro Gomes representa a opção mais sólida em termos institucionais, porém mais resistente diante dos aspectos do programa neoliberal extremado que representem menor capacidade indutiva/reguladora do governo. Esta possibilidade de atração e cooptação se coloca também em relação a um candidato petista que não seja Lula, débil em termos de representatividade e de autonomia política, porém capaz de restaurar a política de conciliação de classes sem reverter as “reformas” já aprovadas por Dilma e Temer e aderindo a uma aplicação mais mitigada e estendida no tempo do programa neoliberal extremado. Essa possibilidade é o ultimo recurso diante do golpe dentro do golpe.

10- A expressão “golpe dentro do golpe” significa algum tipo de esvaziamento da vontade popular expressa pelo voto direto, que apresenta um conteúdo antineoliberal. A primeira opção do “golpe dentro do golpe”, por ser aquela de menor risco político, consiste na aprovação pelo STF da possibilidade de mudança da forma de governo pelo Congresso Nacional, sem a necessidade de convocação de um plebiscito. Isso blindaria o futuro governo diante da perspectiva antineoliberal do voto popular, esvaziando o poder efetivo do presidente eleito e legalizando o governo de um primeiro ministro indicado pelo Congresso Nacional, que certamente seria definido pelo campo do centro-direita. A segunda opção é a intervenção militar, cujos riscos e limites já levantamos.

11- Nenhuma dessas alternativas resolve no curto prazo a crise de hegemonia hoje vigente no Brasil (sim, a crise político-institucional evoluiu para uma crise de hegemonia, paralela a uma crise de contra-hegemonia).  O que coloca para a esquerda socialista a necessidade de repensar suas estratégias e, principalmente, sua relação diante do lulopetismo.

12- Em primeiro lugar, é preciso considerar que o lulopetismo é uma das opções do “partido da ordem”. Sua rejeição atual pelos setores hegemônicos do bloco no poder é momentânea e pode ser claramente revertida na medida em que os trabalhadores passem à ofensiva. Por outro lado, desde a crise que levou ao impeachment o lulopetismo procurou se apresentar como uma alternativa confiável ao bloco no poder, tanto no sentido de aplicar a plataforma neoliberal extremada, mesmo que de forma lenta e gradual, quanto no sentido de cooptar o radicalismo popular e domesticá-lo com palavras de ordem como “não vai ter golpe”, “eleições diretas já” e “Lula livre”. Essa estratégia cacifa o lulopetismo como a opção mais viável diante da falência das estratégias centristas e da radicalização do movimento de massas. Ou seja, se não é possível malhar o ferro quente, que o malhe morno!

13- Em segundo lugar, é preciso dizer que se a candidatura Ciro Gomes orbita em torno do neoliberalismo moderado; tentando ocupar a posição exercida pelo PT nos últimos dezesseis anos, as candidaturas da esquerda socialista (Manuela D’ Ávila e Guilherme Boulos) oscilam entre a adesão à candidatura neoliberal moderada do PT ou de Ciro em nome da unidade, possibilidade admitida pela própria candidata do PC do B, ou a uma versão piorada do projeto democrático-popular (PDP).

14- A versão do PDP apresentada pela candidatura Boulos é pior que a original, pois contaminada pelo populismo lulopetista, ou seja, pela diluição da perspectiva classista em favor da noção amorfa de “povo” e pela adesão de grande parte da sociedade civil do mundo do trabalho à filantropia e ao “melhorismo” neoliberal moderado. Nesse sentido, é um retrocesso em relação ao PDP de 1989 e mais ainda ao PDP de 1987. Alem disso, expressa a fluidez ideológica dos setores proletarizados mobilizados pelo MTST, que se inserem no processo econômico-social de maneira precarizada, o que dificulta sua identificação como classe social, em favor de sua identificação como “massa” ou “povo”. A contraparte desta perspectiva ideológica é a identificação dos capitalistas como “ricos” e os trabalhadores como “pobres”; o que num país como o Brasil em que aqueles remunerados com cinco salários mínimos já são considerados classe média, obscurece a real distinção entre exploradores de força de trabalho, trabalhadores melhor remunerados e trabalhadores precarizados. Neste sentido, o programa da candidatura Boulos não vai além do que a própria perspectiva neoliberal antecipa para processos sociais em que a concentração de renda atinge níveis insustentáveis do ponto de vista político e ideológico, exigindo paliativos para a manutenção da ordem social.


Escola de Formação Socialista (EFS)