Análise de Conjuntura Político-Eleitoral nº 006/2018

Consolidado em 15 de outubro de 2018

1- O primeiro turno das eleições confirmou a polarização entre a extrema-direita, representada pela candidatura Bolsonaro, e o centro-esquerda, representada pela candidatura Haddad, com o centro-direita (Alckimin, Marina, Meireles, etc.) e a esquerda socialista sofrendo uma derrota inédita desde a redemocratização. Confirmou também a crise do sistema de representação política, com a ascensão vertiginosa de candidaturas e forças políticas identificadas com a “antipolítica”, com a recusa da política como mediação dos conflitos sociais e da estrutura político-partidária tradicional, tida como corrupta e ineficaz.

2- A onda em torno da candidatura Bolsonaro iniciada após as manifestações do #ELENÃO! se acelerou na reta final, quase garantindo sua vitória no primeiro turno. Para além da quase totalidade das classes burguesas e de classe média, sua votação contou com a adesão de setores proletários importantes, indicando que na reta final a campanha foi hegemonizada pelo apelo subjetivo, pelas temáticas da segurança pública, da corrupção, da pauta cultural conservadora e da “antipolítica”, e não pela questão socioeconômica. Na batalha pela conquista da subjetividade do eleitor venceram o antipetismo e a defesa dos valores conservadores contra o messianismo construído em torno da figura de Lula e a promessa de restauração do “paraíso perdido”, ou seja, os anos de bonança durante seus dois mandatos. Nesta vitória foi fundamental o uso e abuso das redes sociais para disseminar fake news sobre o movimento do #ELENÃO!, sobre o PT e seu candidato, numa verdadeira operação de “terrorismo midiático”. Além disso, a publicização de apoios de setores do empresariado e de lideranças políticas e candidatos ligados a outras candidaturas presidenciais criou um “efeito manada” que atraiu parte expressiva dos eleitores indecisos, que definiram seu voto nos últimos dias (15% dos votantes). A tática bolsonarista de não participar dos debates e de evitar expor suas reais posições neoliberais em termos econômicos foi exitosa, garantindo sua vitória por larga margem. O apoio de parte expressiva do grande capital, particularmente do agronegócio, do setor de serviços e do comércio, deu à Bolsonaro uma base material importante, suficiente para superar a pequena estrutura organizacional de seu partido. Se, por um lado, o “efeito manada” em torno da candidatura Bolsonaro atraiu a maior parte do voto de direita, esvaziando severamente as votações de Alckimin, Marina, Álvaro Dias e Meireles, por outro lado, reduziu o ritmo de adesão e de transferência do voto lulista à candidatura Haddad.

3- A crise do sistema de representação política, que se arrasta desde 2013, interferiu nas eleições não apenas reduzindo drasticamente o peso eleitoral da maioria dos grandes partidos, mas favorecendo a eleição de candidatos identificados como outsiders, como gente alheia e avessa à política profissional, e/ou com a “antipolítica”. Empresários, militares, palhaços, atores pornográficos, youtubers, etc., foram eleitos Brasil afora com votações expressivas, favorecendo os pequenos partidos de direita, particularmente o PSL e o NOVO, pulverizando e desqualificando ainda mais o sistema de representação política, pois nessas condições a governabilidade passa a depender mais do que nunca do fisiologismo e do patrimonialismo. O acentuado esvaziamento das candidaturas de centro-direita atingiu negativamente a formação das bancadas parlamentares na Câmara e no Senado dos maiores partidos deste campo, como PSDB, MDB, DEM e PP, favorecendo a fragmentação partidária. O PSDB foi particularmente atingido, se reduzindo à condição de um partido intermediário em termos de inserção institucional, tendendo a perder protagonismo e a condição de principal operador político do grande capital e de representante ideológico do neoliberalismo extremado. Papéis que podem vir a ser exercidos por outros partidos, como o PSL e o NOVO. A candidatura Alckimin, no contexto da sua desidratação eleitoral, sofreu um processo de “cristianização”, com abandono de importantes quadros partidários do PSDB e dos partidos que integram o “Centrão”, revelando que a tática de reforçar o antipetismo para se qualificar como alternativa ao bolsonarismo gerou o efeito contrário.

4- Haddad consolidou sua posição como principal candidato do campo da centro-esquerda, mesmo com a redução do ritmo de crescimento do seu eleitorado na última semana, derrotando a candidatura Ciro Gomes e esvaziando severamente a candidatura Boulos. Corretamente a campanha petista se posicionou contra a pauta neoliberal e as reformas do governo Temer, defendendo um programa antineoliberal de retomada do investimento público, defesa dos direitos sociais e condução de distribuição de renda. Porém, ao não denunciar o Golpe de Estado de 2016 e a participação do PSDB, do MDB e do DEM em sua execução, imaginando com isso criar pontes com o grande capital para obter apoio no segundo turno, fragilizou o ataque ao antipetismo, criando a impressão em amplos setores sociais de que o impeachment de Dilma foi correto. Além disso, na semana final, ao manter o foco da disputa pela subjetividade na personalidade mítica de Lula e na defesa de sua libertação, ao invés de acentuar a mística da organização coletiva e da ação de massas, também se fragilizou diante do “terrorismo midiático” desencadeado pelo bolsonarismo.

5- Apesar de mais à esquerda e mais crítica do que a candidatura Haddad, a candidatura Ciro Gomes não conseguiu superar a força política e a estrutura organizativa do PT. Porém, quando somadas, as duas candidaturas venceram as eleições em quase metade dos municípios (2.700 municípios num universo de aproximadamente 5.500), evidenciando a capilaridade do voto de esquerda em todo o território nacional e suas possibilidades de crescimento. A candidatura Boulos foi engolida pelo petismo não apenas pelo voto útil em Haddad definido nos momentos finais da campanha, mas também por não conseguir se diferenciar do discurso e da pauta petista. Apesar do sucesso em ampliar a representação do PSOL na Câmara, a campanha Boulos pouco concorreu para a constituição de uma alternativa real ao petismo, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista ideológico.

6- Para o segundo turno a tática de Bolsonaro tem sido a de caminhar para o centro, atenuando determinados aspectos de seu discurso, como a misoginia e o racismo, e buscando alianças no campo da centro-direita (PTB, PSC), ao mesmo tempo em que evita o debate sobre a questão socioeconômica e concentra sua campanha no antipetismo. A “neutralidade” dos principais partidos do centro-direita (PSDB, MDB, PP, DEM, PSD, PPS) favorece o viés antipetista da campanha bolsonarista e revela a posição da maioria das frações burguesas, inclusive do grande capital, diante da ameaça à democracia liberal representativa materializada por Bolsonaro: é preferível apostar no aprofundamento do golpe, com a radicalização da luta política e o provável fechamento do regime para garantir a aplicação do programa neoliberal extremado, do que negociar a adoção de um programa neoliberal moderado com um hipotético governo Haddad.

7- Já a tática petista tem combinado ataque ao neoliberalismo extremado, defesa de um programa antineoliberal, bem como preservação da democracia liberal representativa e da política como instrumentos de mediação do conflito social. Todo o campo de esquerda declarou apoio à candidatura Haddad (PSOL, PSB, PDT, PCB, PSTU, PPL), além dos movimentos sociais, fortalecendo a perspectiva antineoliberal e constituindo o eixo político de constituição de uma frente ampla, de caráter antifascista, que envolva até mesmo setores e lideranças do centro-direita. 

8- Apesar da grande vantagem obtida por Bolsonaro no primeiro turno, a candidatura petista tem possibilidades concretas de ganhar as eleições por conta de alguns fatores. Em primeiro lugar, desde 2002 o voto popular tem tido um caráter predominantemente antineoliberal, o que garantiu as vitórias petistas na últimas quatro eleições. O favoritismo de Lula na atual eleição e a presença de Haddad no segundo turno indicam que esta tendência de longo prazo não se modificou, apesar de ter sido “subsumida” pela subjetividade antipetista e conservadora da última semana da campanha. Bolsonaro evita debater a questão econômica porque sabe que seu programa vai na contramão desta tendência. Em segundo lugar, a vitória das candidaturas Haddad e Ciro em metade dos municípios indica que apesar de francamente majoritário no Norte e Nordeste, o eleitorado de esquerda se distribui por todo o território nacional, estando presente com relativa força mesmo em redutos importantes do bolsonarismo, como Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul. O que abre reais possibilidades de expansão. Em terceiro lugar, nada menos do que 15% dos votantes decidiu o voto nos três últimos dias de campanha, portanto, é um eleitorado que acompanhou em grande medida o “efeito manada” em torno da candidatura Bolsonaro e que pode ser revertido. Finalmente, ao contrário do que se previa, não houve o aumento expressivo do número de votos brancos/nulos e de abstenções nesta eleição em relação à 2014 (29% em 2014, 30% agora), o que evidencia que a polarização entre a extrema-direita e o centro-esquerda mobilizou eleitores que tenderiam a se abster por conta da descrença com o sistema de representação política. Isso sugere que a intensificação do debate, da mobilização e da polarização contra o neoliberalismo e a perspectiva fascista pode atrair o voto deste segmento do eleitorado. 

9- No entanto, para concretizar essas possibilidades é necessário trazer o debate para o âmbito do confronto objetivo entre neoliberalismo e antineoliberalismo, ou seja, radicalizar o discurso pela esquerda e num sentido classista, demonstrando o antagonismo entre o programa bolsonarista e os interesses corporativos das classes trabalhadoras. Em suma, combater o predomínio do fator subjetivo na campanha, marcado pelo antipetismo e pela antipolítica, e mostrar como a contradição capital versus trabalho se apresenta na campanha, polarizando as duas candidaturas. Para tanto, é necessário incorporar organicamente na campanha os movimentos sociais e o movimento sindical, extrapolando sua dimensão meramente institucional em favor da mobilização permanente numa “campanha-movimento”, ao mesmo tempo em que se busca atrair para uma frente antifascista setores que podem até se colocar no campo do antipetismo, mas que tem reais preocupações com o conteúdo fascista da candidatura Bolsonaro. Garantidas essas condições, a possibilidade de uma virada eleitoral pode se concretizar.

10- Diante disso, cabe à esquerda socialista se integrar organicamente na campanha sem se render à chantagem do “mal menor” (ruim com o PT, pior com Bolsonaro!) e concorrer para transformá-la num instrumento permanente de organização e mobilização visando o período pós-eleitoral, independente de quem vença. Isto porque num eventual governo Bolsonaro os instrumentos populares de organização e mobilização, ao lado da articulação de movimento de frente ampla antifascista e da unidade de ação em torno de luta de massas, serão decisivos para garantir a sobrevivência e efetiva presença da esquerda socialista. Já num possível governo Haddad tais instrumentos são decisivos para evitar e/ou combater qualquer estelionato eleitoral sob a forma de política de conciliação de classes e de alguma variante moderada do programa neoliberal.

11- Independente de quem vença as eleições, o próximo período da luta de classes será marcado por uma intensificação do conflito político e social, aprofundando a crise orgânica e favorecendo uma saída autoritária. Caso ganhe Haddad, as pressões para que seu governo cometa um novo “estelionato eleitoral” serão intensas, exigindo de sua base de apoio enorme capacidade de mobilização e organização para que tal intento não se concretize. Os setores mais radicalizados do antipetismo, hoje organizados na extrema-direita, devem vanguardear a oposição ao governo, desencadeando uma ofensiva em diversas frentes (midiática, parlamentar, de massa), talvez evoluindo para a constituição de um partido fascista propriamente dito. Caso vença Bolsonaro, o impacto negativo da aplicação do seu programa sobre o nível de vida de milhões de pessoas deverá gerar forte reação das classes trabalhadoras. Na melhor hipótese os partidos de esquerda, movimentos sociais e sindicatos deverão opor forte resistência à ação governista, iniciando um novo ciclo de lutas; caso contrário devem aumentar os episódios espontâneos e desarticulados de violência social. Nessas circunstâncias, a perspectiva de fechamento ainda maior do regime político por meio de um autogolpe, ou mesmo da intervenção militar direta, se coloca com muita força entre as alternativas políticas das classes dominantes, exigindo dos trabalhadores maior capacidade de luta e resistência para frustrar essa perspectiva. 

ESCOLA DE FORMAÇÃO SOCIALISTA