Análise de Conjuntura Pós-Eleitoral nº 008/2018

Consolidado em 10 de novembro de 2018.

1- O segundo turno das eleições confirmou o favoritismo do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro. Apesar da grande mobilização política e social em torno da candidatura Haddad e do caráter antineoliberal, antifascista e pró-democrático assumido por sua campanha na reta final, prevaleceu o discurso da antipolítica, do combate à corrupção e ao ativismo social, sintetizado no antipetismo e alimentado por um esquema de produção e disseminação de mentiras, calúnias, desinformação e contra-informação que se intensificou nos últimos dias e orientou o voto de milhões de eleitores, particularmente dos setores sociais tradicionalmente alheios ao debate político cotidiano.

2- A vitória de Bolsonaro é o resultado de um conjunto de processos que se desenvolvem à médio prazo na sociedade brasileira e que foram acentuados a partir da crise econômica mundial de 2008. Entre os principais podemos destacar o colapso do neoliberalismo moderado e da política de conciliação de classes promovidos pelos governos petistas; o florescimento de uma multiplicidade de novos aparelhos privados de hegemonia do mundo do capital fortemente articulados com as novas mídias; o avanço do conservadorismo político e cultural em setores antes hegemonizados pelo lulismo e pelo petismo por conta de sua acomodação com a perspectiva ideológica neoliberal presente no empreendedorismo, na teologia da prosperidade e no moralismo;o transformismo imposto aos partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais, expresso na chantagem do “mal menor”, que gerou um processo de desacumulação em termos organizativos, mobilizatórios e ideológicos; a crise do sistema de representação política a partir das Jornadas de Junho de 2013 e florescimento de uma perspectiva antipolítica em amplos segmentos sociais; o Golpe de 2016 que proporcionou a ampliação de ações persecutórias a partir da manipulação seletiva das leis e dos tribunais. No entanto, apesar de criar uma tendência favorável, nada disso tornava a vitória eleitoral de Bolsonaro inevitável.

3- Portanto, é preciso considerar os fatores específicos de conjuntura que possibilitaram a consumação de sua vitória no segundo turno. a) Em primeiro lugar, destaca-se o apoio explícito à sua candidatura por parte de variadas frações do capital – do grande ao pequeno, do externo ao interno, do agronegócio, do comercial e do setor serviços ao financeiro e ao industrial, principalmente nas semanas finais da campanha. Apesar de discordâncias específicas de algumas frações com aspectos do programa econômico apresentado por Bolsonaro, esta unidade se deve ao compromisso do candidato com asprincipais medidas da pauta econômica do Golpe: o corte de gastos sociais, que libera recursos para pagamento de juros da dívida pública; e a retirada de direitos sociais e trabalhistas, que barateiam a mão de obra e reduzem os custos salariais diretos e indiretos, verdadeira “tábua de salvação” do conjunto do capital para enfrentar a crise. O apoio generalizado das frações burguesas a Bolsonaro e a perspectiva do bloco no poder de instrumentalizar as eleições para legitimar o Golpe de Estado de agosto de 2016 se refletiu na postura geral da grande mídia e do Judiciário, que combinaram o apoio escancarado, a omissão e a crítica velada. b) Em linhas gerais, a grande mídia deu cobertura favorável ao candidato e/ou alimentou o antipetismo reverberando as mentiras propagadas pela campanha bolsonarista e as denúncias da LavaJato, em especial alguns órgãos de mídia que negociaram este apoio em troca de verbas publicitárias e favorecimento no próximo governo. Os órgãos que não o apoiaram explicitamente adotaram uma postura omissa diante de seu esquema de manipulação de informações, de sua recusa em participar dos debates, das denúncias de crimes eleitorais cometidos por sua campanha e dos ataques aos direitos democráticos da oposição ou, quando muito, partiram para críticas e advertências tímidas em nome da legalidade constitucional e da manutenção da integridade da democracia brasileira, como se esta já não estivesse mutilada desde o Golpe de 2016, aliás com seu próprio apoio militante. c) No Judiciário, particularmente no STF e no TSE, a postura em geral não foi diferente, evidenciando a participação do “Partido do Judiciário” na tentativa de legitimação eleitoral do Golpe de 2016. A instrumentalização da LavaJato contra a campanha petista já vinha se dando de diversas maneiras, como na divulgação de trechos da delação premiada de Palocci ou no veto à participação de Lula na campanha, mas na semana decisiva diversas iniciativas repressivas foram tomadas para constranger o debate democrático e mesmo o debate acadêmico em diversas universidades e entidades sindicais. Paralelamente, a Justiça eleitoral nada fez em relação às denúncias de uso de Caixa 2, de violência política contra eleitores adversários, além da veiculação indiscriminada de fake news por parte da campanha bolsonarista ou por seus apoiadores. Apenas quando vieram à tona as ameaças do próprio filho do candidato ao STF é que os ministros emitiram notas protocolares de indignação retórica e em defesa da democracia ou tentaram tardiamente garantir a autonomia das universidades. d) O aparato repressivo reproduziu a orientação geral do Judiciário, oscilando entre a adesão à candidatura, constrangendo ou mesmo impedindo a mobilização em torno do antifascismo e da candidatura Haddad, e a omissão diante da violência política dos bolsonaristas. e) O governo Temer não apenas torceu avidamente pela vitória de Bolsonaro, como negociou cargos e se dispôs a “limpar o terreno” para o próximo mandato aprovando agora as medidas mais impopulares como a Reforma da Previdência. f) Finalmente, a vitória de Bolsonaro também se deve à uma ofensiva massiva em torno da produção e disseminação de mentiras, calúnias e difamações pelas redes sociais, como nunca antes havia ocorrido, reagindo ao crescimento da candidatura Haddad e impedindo que o debate programático dominasse a campanha e atingisse parte expressiva do eleitorado, apesar do enorme esforço de politização e mobilização realizado pelas forças que o apoiaram.

4- A candidatura Haddad conseguiu suscitar na última semana um esforço de mobilização política e social em torno de uma campanha eleitoral como não se via desde 1989. A integração de partidos de esquerda, movimentos sociais, sindicatos, entidades sociais, simpatizantes, artistas e intelectuais à mobilização criou uma “onda Haddad” que conseguiu politizar a campanha em torno de uma perspectiva programática antineoliberal, antifascista e democrática. O compromisso contundente com a reversão da pauta econômica do Golpe, com a aplicação de um programa neodesenvolvimentista de esquerda, baseado na retomada dos gastos públicos e na reversão das medidas neoliberais de Temer, e com a mobilização política democrática e antifascista possibilitou a formação de uma frente política que atraiu votos de outras candidaturas de esquerda e de centro e “virou” parte dos votos bolsonaristas. No entanto, com exceção de uma ou outra liderança individual, a frente política em torno de Haddad não conseguiu atrair o apoio dos partidos de centro-direita que não aderiram a Bolsonaro e nem mesmo de determinadas lideranças (Ciro Gomes) e candidatos a governador de partidos que formalmente aderiram à sua candidatura (PDT – Waldez Góes (AP), Amazonino Mendes (AM), Juiz Odilon (MS) e Carlos Eduardo (RN);e PSB – Rodrigo Rollemberg (DF), Valadares Filho (SE) e Márcio França (SP)). No caso dos partidos que apoiaram Haddad isso se explica por oportunismo eleitoral e político (surfar na onda do favoritismo bolsonarista e colocar-se já como alternativa ao petismo no campo da oposição de esquerda). No caso dos partidos de centro-direita este comportamento de omissão e/ou neutralidade, mesmo quando a campanha bolsonarista assumiu um tom fascistizante ainda mais explícito, como na última semana, revela o receio de descolamento em relação à sua base social burguesa e a perspectiva de assunção a um papel político protagônico na próxima conjuntura como elemento de moderação do conflito político e social, a exemplo do comportamento do PSDB e de FHC. Neste sentido, a perspectiva de criação de uma frente ampla democrática e antifascista,que reunisse de socialistas à liberais e democratas não se consumou, pois a frente política em torno de Haddad não teve a abrangência que deveria, se limitando basicamente ao campo da esquerda e às suas bases.

5- Apesar do esforço de mobilização e politização, a campanha Haddad não conseguiu combater adequadamente a campanha massiva de produção e disseminação de mentiras pela campanha bolsonarista nas redes sociais e nem reverter o arraigado antipetismo de setores proletários importantes. Nestes setores, a denúncia do caráter antipopular do programa de Bolsonaro e suas ameaças à democracia e ao que resta de direitos sociais e políticos só fazia aumentar sua adesão ao bolsonarismo por conta do acentuado descrédito do PT e da esquerda em geral em seu imaginário. Tal comportamento se viu principalmente em setores proletários que ascenderam socialmente durante as experiências de governo do PT e se vinculam a variadas formas de trabalho autônomo e de micro-empresariamento individual e que foram hegemonizados ao longo dos anos pela perspectiva do empreendedorismo e da prosperidade individual, alimentada por determinadas políticas estatais, pelo discurso religioso fundamentado na teologia da prosperidade e mesmo pelo hiper-individualismo neoliberal. Em setores proletários há muito submetidos ao trabalho precarizado e informal e para quem 13º salário, férias remuneradas e aposentadoria não passam de uma quimera, pois não fazem parte de seu horizonte imediato, o compromisso com o resgate dos direitos sociais e trabalhistas soou como defesa de privilégios por parte de categorias melhor organizadas ou ainda detentoras de tais benefícios, evidenciando os limites educativos e mobilizadores de uma pauta exclusivamente defensiva no âmbito da crise estrutural do capital. Por conta disto, para a maior parte das massas proletárias a campanha do 2º turno continuou dominada por uma perspectiva subjetivista, marcada pelo discurso do antipetismo, da antipolítica, do salvacionismo e do conservadorismo cultural, em detrimento dos interesses de classe objetivos.

6- Vencida a eleição Bolsonaro iniciou o processo de formação do seu governo e de negociação com as forças aliadas ou afins. Neste processo, tem se afirmado a perspectiva neoliberal extremada do seu programa de governo, anunciada ao longo da campanha e que lhe garantiu o apoio do bloco no poder; a composição com as forças políticas conservadoras e fisiológicas, de onde o próprio candidato se originou; a massiva presença militar no primeiro escalão e a tentativa de atrair o apoio do “Partido da Justiça”. Nesse plano, deve-se atentar para quatro questões. a) A indicação de Paulo Guedes para um superministério da economia, que incorporará a indústria, o comércio e o planejamento; a subordinação do meioambiente à pauta do agronegócio; o anúncio da redução unilateral das tarifas alfandegárias, o privilegiamento das relações comerciais com os EUA e a UE em detrimento do MercoSul, da China, dos BRICS e do eixo Sul-Sul, além do compromisso com a reforma da previdência e com a venda de estataise serviços sociais públicos são medidas anunciadas e/ou aventadas que indicam o predomínio dos interesses do capital financeiro internacional em sua gestão e revelam uma pauta econômica centrada no ajuste fiscal, nas privatizações, na abertura comercial, na reprimarização da economia, na retirada ainda maior de direitos sociais e trabalhistas e na redução dos gastos sociais. b) A nomeação de figuras notoriamente envolvidas em casos de corrupção e/ou oriundas do governo Temer indica que as forças golpistas comporão a base de sustentação do novo governo, com especial destaque para os partidos do chamado “Centrão”. As negociações em torno disto passam não apenas pela composição da base governista no Congresso, mas pela negociação da dívida dos estados com governadores aliados em detrimento de governadores oposicionistas e pela imediata aprovação de medidas antipopulares como a Reforma da Previdência e outras de caráter conservador, autoritário e fascistizante como o projeto “Escola sem Partido”. c) Paralelamente, a presença militar no alto escalão do governo deve aumentar ainda mais em comparação com o governo Temer, buscando garantir o apoio das Forças Armadas à aplicação da pauta política e cultural conservadora e a repressão à oposição. d) Por outro lado, a nomeação de Sérgio Moro para um superministério da Justiça, que incorpore a Polícia Federal, o Conselho de Controle das Atividades Financeiras (COAF) e que conduza a política de segurança pública, busca ganhar a adesão do “Partido da Justiça” ao governo, encaminhando de maneira negociada a ressurbodinação do Poder Judiciário ao Poder Executivo, de modo a garantir o respaldo dos tribunais para medidas inconstitucionais voltadas para o endurecimento da legislação penal e a implementação de atos de exceção, bem como para a perseguição ao PT, à esquerda socialista, aos sindicatos, movimentos sociais e entidades ligadas ao mundo do trabalho, tendo em vista restringir ou mesmo eliminar representatividade e organização dessas forças políticas.

7- Apesar do caráter aparentemente errático das declarações dadas pelo novo presidente e por seus principais assessores acerca do que farão, estas movimentações indicam que em linhas gerais o programa do governo passa pela radicalização da pauta neoliberal extremada já aplicada pelo governo Temer; pela restrição de direitos e garantias individuais nos planos artístico, científico, cultural, comportamental e dos costumes, revertendo ou congelando processos de inclusão política e social de mulheres, grupos étnicos, minorias, etc; pelo endurecimento da legislação penal e das práticas repressivas contra as populações carentes em nome do combate à criminalidade e pela reestruturação do sistema de representação política. Isto significa não só a manutenção, mas a radicalização e ampliação de medidas de controle do conflito político e social num sentido autoritário e mesmo fascistizante. Medidas como a lei antiterrorismo, o fim do imposto sindical e o asfixiamento financeiro dos sindicatos, a lei da ficha-limpa, entre outras, devem ser “aperfeiçoadas” no sentido de impor maiores restrições à liberdade de organização e participação política. No entanto, além da redução do número de partidos, que poderá ocorrer pelo estabelecimento de critérios ainda mais rigorosos para registro e funcionamento, a pauta fascistizante do novo governo implica na aprovação de medidas que podem excluir da vida política os partidos e organizações identificados com a tradição comunista, que garantam impunidade e maior autonomia operacional para os agentes repressivos tanto no combate à criminalidade, quanto na repressão aos movimentos sociais e organizações de esquerda; que permitam a tutela do governo sobre as atividades artísticas, científicas e culturais, criminalizando práticas, posturas e concepções consideradas “desviantes”; que criminalizem ainda mais a luta dos trabalhadores. Esta poderá ocorrer de diversas maneiras: submetendo os partidos de esquerda a uma ofensiva judicial, policial e midiática em nome do combate à corrupção; acusando os movimentos sociais de prática terrorista e partidarização; asfixiando financeiramente os sindicatos e entidades de assistência social, jurídica e formação cultural, além de acusá-las de vinculação partidária; restringindo acentuadamente o espaço de atuação dos trabalhadores e suas organizações no âmbito das sociedades civil e política, e em contrapartida ampliando o espaço da extrema-direitae dos aparelhos privados de hegemonia de perfil autoritário, fascista, ultraliberal e conservador (tanto de fundamento religioso, quanto laico).

8- Entretanto, apesar da vitória eleitoral nos dois turnos, do capital político adquirido junto ao bloco no poder e parcelas significativas da população e do triunfalismo manifesto pelo novo presidente e seus apoiadores, o futuro governo conviverá com uma situação econômica, social e política muito difícil e com contradições que podem levá-lo ao fracasso e ampliar ainda mais a crise política, frustrando os que pretendiam instrumentalizar as eleições de 2018 para legitimar o Golpe de 2016. a) Em primeiro lugar, o cenário econômico internacional aponta para um acirramento do ciclo repressivo e da guerra comercial entre as potências imperialistas, com maior impacto em países periféricos e mais vulneráveis aos fluxos do capital internacional. Somando-se a isto o caráter naturalmente recessivo do programa neoliberal extremado e o fato de que há grande capacidade produtiva ociosa, pode-se esperar grandes dificuldades para a retomada do crescimento econômico e dos níveis de emprego, contrariando as promessas de campanha em torno de uma superação rápida da crise econômica. Por conta das características excepcionais da eleição de 2018 é possível afirmar que a vitória de Bolsonaro não expressa uma reversão da tendência manifestada pelo voto popular na última década e meia, de perfil predominantemente antineoliberal. Neste sentido, é de se esperar que a aplicação do programa neoliberal extremado pelo novo governo gere descontentamento em parte de seu próprio eleitorado e que seu fracasso em viabilizar a recuperação econômica o amplie ainda mais. Não à toa, no momento o presidente eleito negocia com o governo Temer a aprovação imediata de determinadas medidas impopulares, isentando o novo governo do desgaste. Ao lado disso, as negociações em torno da composição do governo revelam não apenas o caráter manipulado das eleições, mas o próprio compromisso da candidatura Bolsonaro com a “velha política”, o que abre a possibilidade de que parte do eleitorado bolsonarista, iludida com o discurso da antipolítica, da anticorrupção e do salvacionismo na economia se desiluda e demonstre seu descontentamento em curto prazo. Há uma grande distância entre o descontentamento e a mobilização oposicionista, mas esse é um segmento que por vir a se considerar enganado pode transitar para uma postura crítica e oposicionista. b) Em segundo lugar, se há unidade burguesa em torno do aprofundamento da reforma trabalhista, da reforma da previdência e do corte de gastos sociais, não há unidade quanto ao resto do programa neoliberal extremado de Bolsonaro. O capital industrial teme o aprofundamento da abertura comercial unilateral e a redução da capacidade de financiamento do Estado operado pelo ajuste fiscal; o setor do agronegócio mais vinculado ao mercado externo teme retaliações por parte dos importadores por conta das opções diplomáticas preferenciais do novo governo e do esvaziamento das políticas de defesa do meio ambiente; o capital interno receia que numa nova onda de privatizações fortemente marcada pela ligeireza e pela irresponsabilidade favoreça ainda mais o capital externo, dificultando sua participação no butim. c) Em terceiro lugar, apesar da unidade em torno da necessidade de legitimação do Golpe e do antipetismo o governo terá uma composição contraditória, acomodando interesses que tendem a se confrontar no curto prazo. Se de um lado há uma presença hegemônica do capital financeiro internacional na definição da política econômica, por outro a composição com o “Partido Militar” fará com que a tutela militar sobre o governo Bolsonaro atinja intensidade e amplitude inéditas desde o final da Ditadura Militar, colocando no centro da pauta de gastos, e em choque com o ajuste fiscal, as demandas corporativas dos militares: privilégios na Previdência, aumento salarial, crescimento do efetivo, gastos com aparelhamento, armamento e assunção de novas atribuições no controle do conflito social. A indicação de Sérgio Moro para o Ministério da Justiça também carrega contradições importantes. De um lado é uma clara tentativa de acomodação com o “Partido da Justiça”, tanto para garantir o respaldo dos tribunais para as medidas inconstitucionais e os atos de exceção, quanto para capitalizar politicamente com base na bandeira do combate à criminalidade e à corrupção, direcionando a ofensiva contra o crime organizado, o PT e a esquerda em geral, vistos como um único e mesmo problema. De outro, a indicação desnuda a clara intervenção política do Poder Judiciário no processo eleitoral, deslegitimando a eleição aos olhos da opinião pública. Além disso, se choca com a ampla composição com partidos e forças políticas fisiológicas e corruptas cooptadas no campo da direita. Se o combate ao PT e à esquerda pode criar o eixo de unidade entre o “Partido da Justiça” e o “Partido Fisiológico” no interior do governo, por outro lado, a omissão diante dos casos novos e antigos de corrupção envolvendo membros do governo será uma fonte importante de deslegitimação, exigindo algum tipo de limpeza interna e gerando defecções. d) Além disso, há que considerar que não há consenso entre as classes dominantes em torno da pauta conservadora nos planos cultural e comportamental e da perspectiva de violência política indiscriminada apresentadas pelo bolsonarismo. Parte do bloco no poder, dos partidos de direita, da grande mídia e dos aparatos estatais (a exemplo do Judiciário e das Forças Armadas), tem contradições com a adoção de medidas e práticas machistas, misóginas, racistas e homofóbicas, que firam direitos e liberdades individuais; com a tutela governamental sobre a produção artística, científica e cultural e/ou com a violência política praticada de forma aleatória e espontânea por indivíduos e grupos ad hoc ou mesmo por organizações paramilitares. E isso, tanto por razões econômicas, como o caráter relativamente “customizado” do mercado voltado para mulheres, LGBT’s, negros, etc., com base numa perspectiva “identitária”; quanto por razões institucionais e políticas, como a defesa do monopólio da violência pelo aparato estatal e a necessidade de preservar direitos e garantias individuais que confiram uma fachada “democrática” a um regime cada vez mais autocrático, impedindo que o bolsonarismo evolua para uma condição fascista clássica. Além disso, a perspectiva fascista de eliminação da esquerda é temerária por conta das características da dominação burguesa no Brasil de hoje. Não é possível simplesmente eliminar partidos e organizações, principalmente o PT e a CUT, que bem ou mal fazem a mediação entre a dominação burguesa e os trabalhadores, funcionando como poderosos instrumentos transformistas, e que possuem uma inserção institucional considerável. Por conta disto, o antipetismo e a perseguição ao PT devem se limitar a enfraquecer sua capacidade de polarizar a luta politica e mesmo reassumir o governo, reforçando sua solidariedade à ordem. Sua eliminação da cena política ou mesmo fragilização e redução substantivas de sua estrutura organizativa fariam a dominação burguesa assumir aspectos repressivos difíceis de operar por conta da atual estrutura de classes da sociedade brasileira, potencializando o risco de subversão da ordem em caso de insucesso neste tipo de empreitada. Neste sentido, é de se esperar que os setores mais lúcidos do bloco no poder busquem conter a fúria antipetista nos limites acima indicados, dirigindo os ataques mais duros à esquerda socialista.

9- Nesta situação, por conta de seus tradicionais vínculos com o bloco no poder e setores do aparato de Estado e de sua inserção institucional (20% da Câmara dos Deputados, 35% do Senado e 30% dos governadores), os principais partidos de centro-direita devem compor o campo da “oposição de direita” (PSDB, MDB, DEM, PPS), podendo vir a ter um protagonismo político inesperado face o resultado das eleições presidenciais. Vocalizando as ressalvas de determinados setores do bloco no poder e das classes médias com a aprovação integral da pauta fascistizante do novo governo esses partidos se qualificam como “fiel da balança” no confronto entre o bloco governista e a oposição de esquerda, funcionando como um elemento de estabilização política num cenário de acirramento do conflito político e social, sem aderir a um lado ou outro. Caso a situação evolua para uma grave crise de governo esses partidos podem até mesmo vir a participar de sua composição ou lhe dar sustentação em nome da salvação do Golpe e de sua pauta neoliberal extremada.

10- Além desses fatores de instabilização política que perpassam o novo governo e o campo golpista, é preciso considerar a capacidade de oposição e resistência dos trabalhadores e do campo de esquerda. No campo da esquerda, a intensa mobilização em torno da candidatura Haddad teve por pauta a resistência ao conservadorismo, ao autoritarismo e ao fascismo, de um lado, e à plataforma econômico-social do Golpe, de outro. Este campo, que agrega em termos organizativos da centro-esquerda (PT, PDT, PSB, PC do B) à esquerda socialista (PSOL, PCB, PSTU, PCO, UP, entre outros) e movimentos sociais, sindicatos e entidades sociais, tem condições de se transformar num pólo de resistência ao governo Bolsonaro e de se constituir numa alternativa de governo. No entanto, para o cumprimento de tal papel é necessário considerar algumas questões. Em primeiro lugar, é preciso manter a defesa da plataforma democrática e antineoliberal apresentada durante a campanha, apostando no seu aprofundamento e radicalização, e abdicar de qualquer perspectiva de conciliação e acomodação com o novo governo. Em segundo lugar, é preciso recompor as fraturas causadas pelo hegemonismo petista e pelo lulismo na frente democrática e antifascista. Em nome da inocência do ex-presidente, a maior parte da campanha petista foi conduzida em torno do personalismo lulista e da defesa abstrata de um paraíso perdido impossível de ser restaurado e de uma perspectiva de conciliação de classes que fez a campanha girar em falso por muito tempo. Isto porque esta tática não apenas impediu a denúncia do Golpe e de seus apoiadores, entre eles Bolsonaro, mas inviabilizou a constituição de uma aliança política ampla no campo da esquerda e alimentou o antipetismo em diversos segmentos sociais, particularmente proletários. O caráter classista e antifascista da campanha só se confirmou no segundo turno, o que se demonstrou insuficiente para “virar” o voto proletário em favor de Haddad. O fato do PT ter preservado a maior parte de sua inserção institucional, principalmente na Câmara dos Deputados e nos governos estaduais e de ter mantido sua condição de grande partido favorece a preservação desse hegemonismo, a subordinação do movimento de resistência ao lulismo (agora sob a bandeira do Lula Livre) e a disputa fratricida com o PDT e Ciro Gomes, dividindo esforços na resistência ao Golpe. Por sua vez, apostando no isolamento e enfraquecimento do PT, Ciro e o PDT buscam oportunisticamente se colocar como alternativa no campo da esquerda, reforçando o personalismo e uma perspectiva também hegemonista. Em terceiro lugar, é importante considerar que a mobilização em torno de uma campanha eleitoral é distinta daquela necessária para uma luta prolongada e abrangente de resistência e recomposição. Isto porque além de enfrentar na maior parte das vezes pautas específicas e que tendem a favorecer a fragmentação (redução da maioridade penal, Reforma da Previdência, Escola sem Partido, cobrança de mensalidades nas universidades públicas, retirada do13º salário, etc.), terá que combinar a luta institucional com a luta de massas numa sintonia fina complexa. O transformismo petista sobre partidos de esquerda e movimentos sociais ainda apresenta seus efeitos, exigindo um enorme esforço de reorganização e reconstituição de instrumentos de luta e mobilização. A perspectiva classista precisa continuar e prevalecer sob o risco da esquerda se desarmar diante da ofensiva que sofrerá do governo, do Judiciário e do bloco no poder. Esta ofensiva deverá se desdobrar em termos políticos, judiciais e repressivos, com o fito de restringir ainda mais o espaço da esquerda, particularmente da esquerda socialista e forçar a esquerda institucional a funcionar como álibi para uma fachada democrática do regime, isolando-se da luta de massas ou manipulando-a em favor de seus interesses específicos, como nas negociações entre os governadores de oposição e o governo federal em torno das dívidas estaduais, do repasse de verbas e na própria negociação com o Ministério da Justiça e o judiciário em relação à ofensiva anticorrupção. Para evitar estas tendências à fragmentação e à cooptação é crucial a constituição de uma frente ampla democrática e antifascista que tenha como eixo politico: a) Defesa dos direitos: civis, sociais e políticos; b) Defesa dos partidos de esquerda e movimentos sociais; c) Defesa dos sindicatos; d) Defesa da liberdade de organização, manifestação e expressão; e) Defesa do ensino público, laico e crítico; f) Defesa do SUS. A frente deve aglutinar numa instância diretiva partidos, sindicatos, movimentos sociais e demais organizações, buscando viabilizar a resistência, articulando a luta institucional e a luta de massas em torno de uma plataforma que aponte o combate ao conservadorismo, ao autoritarismo, ao fascismo, de um lado,e a retirada de direitos, de outro; mas que também defenda uma pauta ofensiva de avanço democrático, ampliação de direitos e distribuição de renda. Nesse sentido, a constituição desta frente é urgente e tem por tarefa imediata a luta contra as medidas antipopulares que o governo Temer pretende aprovar.

11- Para a esquerda socialista (PSOL, PCB, PSTU, PCO, UP, MTST, CONLUTAS, etc.) o período que se inicia é contraditório, pois de um lado abre novas possibilidades, mas de outro carrega muitos obstáculos e ameaças. O arraigado antipetismo em variados setores proletários que votaram em Bolsonaro abre possibilidade de diálogo com os mesmos na exata medida em que o governo bolsonarista gere desilusões e quebra de expectativas. O discurso classista se impõe na medida em que o colapso político e eleitoral da política de conciliação de classes exige que se busque promover uma politização pela esquerda, ou seja, a esquerda socialista deve aproveitar a oportunidade para se livrar definitivamente da “chantagem do mal menor” e anular o hegemonismo petista ou qualquer outro no interior da frente ampla, ao mesmo tempo em que combate o neoliberalismo extremado e a pauta conservadora, autoritária e fascistizante em todas as frentes. Para tanto é necessário construir uma frente de esquerda no interior da frente ampla, com a finalidade de fazer a pauta antineoliberal e antifascista avançar em direção a uma perspectiva anticapitalista. Por outro lado, a ofensiva política, judicial e repressiva que deve se abater sobre toda a esquerda também deve impactar com maior intensidade a esquerda socialista por conta de sua pequena inserção institucional, dos poucos recursos de que dispõe e do antagonismo de sua perspectiva. Diante disso, é fundamental buscar preservar a todo custo os instrumentos de que dispõe atualmente e lutar por sua ampliação, com atuação unificada e coordenada e com responsabilidade, ponderação e respeito às normas básicas de segurança. No entanto, ao mesmo tempo é necessário confrontar o autoritarismo e o fascismo em todos os níveis, denunciando, combatendo e confrontando sem tréguas toda ilegalidade, intimidação, ofensa ou mesmo agressão que vier dos grupos bolsonaristas e dos agentes do aparelho repressivo de Estado. Na atual correlação de forças é fundamental desbaratar tais iniciativas, tendo em vista fazer a perspectiva autoritária e fascista recuar e preservar o espaço de atuação política da esquerda socialista.

12- Diante deste quadro geral, é possível afirmar que a conjuntura que se abre a partir de agora será marcada pelo acirramento do conflito social e político e por uma tendência de instabilização política. De um lado, o bloco no poder fará todos os esforços para consolidar o governo Bolsonaro visando a legitimação do Golpe de Estado de agosto de 2016, acomodando suas contradições internas e buscando garantir sua unidade em torno da aplicação da pauta neoliberal extremada, da derrota da esquerda e do movimento dos trabalhadores e do reforço da autocracia burguesa sob a fachada de uma democracia liberal representativa. Caso contrário, pode partir para um fechamento ainda maior do regime por meio do autogolpe ou mesmo de uma intervenção militar, ambas saídas de consequências imprevisíveis. De outro lado, da capacidade de resistência e contra-ofensiva do campo de esquerda e do movimento dos trabalhadores dependerá não só a derrota do Golpe e de sua perspectiva autocrática, mas a própria possibilidade da sobrevivência política desse campo.

ESCOLA DE FORMAÇÃO SOCIALISTA