Análise de Conjuntura Política nº 001/2019

Consolidado em 4 de fevereiro de 2019.

1. Conforme as análises de conjuntura que a Escola de Formação Socialista (EFS) tem realizado, o período iniciado com as Jornadas de Junho de 2013 e consolidado com o Golpe de Estado de Agosto de 2016 desencadeou um processo de recomposição progressiva das relações entre a base econômica e social e a superestrutura política e jurídica.
As Jornadas de Junho evidenciaram a crise da política de conciliação de classes que vigorava desde 2003 e o acirramento da dinâmica de disputa de classes entre capitalistas, camadas médias e classes trabalhadoras no campo social, gerando um divórcio entre o processo político-partidário herdado da institucionalidade criada com a Nova República e nova dinâmica social em curso. Já o Golpe de Estado de 2016 promoveu o colapso final da política de conciliação de classes e o expurgo do poder governamental da força política vinculada ao mundo do trabalho mais importante, favorecendo o avanço de uma perspectiva política conservadora, autoritária e mesmo fascista. Nesse contexto, teve curso um processo no qual a esquerda (democrática-popular e socialista revolucionária) perdeu o monopólio de mobilização social de amplos contingentes da sociedade, passando a conviver com o poder de mobilização de massa da direita. De um lado, emergiu um processo de integração orgânica entre uma economia profundamente apoiada no capital financeiro, no agronegócio, na agro e minero-industrialização de exportação e nas filiais de grupos oligopolistas internacionais; e uma ordem social na qual mais da metade da classe trabalhadora está submetida à informalidade, precarização, marginalização social e acesso restrito aos direitos sociais. De outro lado, teve andamento um novo processo de reforma da autocracia burguesa mediante a radicalização dos seus aspectos políticos restritivos e repressivos, pois se criou uma ordem política que no plano formal continua liberal-representativa, porém altamente restrita em relação à representação política de esquerda e do mundo do trabalho, sob uma forte tendência bonapartista ou cesarista apoiada nas forças armadas e com apoio de um judiciário ainda mais elitista, antipopular, persecutório e seletivo. Por fim, há a magnificação de uma vasta e diversificada rede de organizações da sociedade civil do capital sedimentando um novo padrão de hegemonia, com destaque para o sistema de mídia, as igrejas neopentecostais e as novas organizações/movimentos neoliberal extremados.

2. A vitória eleitoral de Bolsonaro assegurou a legitimidade do projeto Golpe de Estado de 2016 e proporcionou condições mais favoráveis para a sua implementação quando comparado àquelas que o governo Temer possuía. As condições de condução do referido projeto serão definidas a partir das possibilidades e dos limites determinados pelo caráter, composição e contradições do governo Bolsonaro, de um lado, e pela capacidade de resistência das forças políticas classistas, populares e democráticas às iniciativas, de outro lado.

3. A compreensão do caráter, composição e contradições desse governo assume grande importância para a elaboração e qualificação da política de resistência ao mesmo e ao projeto do Golpe de um modo geral. De início, podemos afirmar que o governo Bolsonaro é composto por quatro “partidos”: o militar, o financeiro, o judiciário e o fisiológico. Dos quatro, o partido militar, formado pelos quadros militares propriamente ditos e/ou quadros oriundos dos corpos técnicos das Forças Armadas, é aquele que claramente assumiu a condição de fiador e principal sustentáculo político do governo, pois ocupam quase a metade do seu alto escalão. Além da presidência e da vice-presidência os militares ocupam desde os ministérios de Segurança Institucional, Defesa, Infraestrutura e das Minas e Energia, até a Coordenação Política e a Educação, passando pela Ciência e Tecnologia e pela Controladoria Geral da União. Isto sem falar nas empresas estatais, superintendências, departamentos e cargos de segundo e terceiro escalão, onde a presença militar e inédita desde o final da Ditadura Militar. Tal realidade não decorre apenas da fragilidade da estrutura partidária em torno da candidatura Bolsonaro e da crise do sistema de representação política, mas também da nova posição assumida pelos militares na cena política após o Golpe de 2016e no contexto internacional. Neste sentido, trata-se de um governo que tende a transitar da forte tutela militar herdada do governo Temer para a restauração do cesarismo militar em novas bases, ocupando o vácuo político aberto pela crise do sistema de representação política. Ou seja, os militares tendem a ultrapassar a posição tutelar que exerciam sobre os assuntos relacionados ao controle dos conflitos sociais e políticos, à indústria bélica, à ocupação dos “espaços vazios” do território nacional e à vigilância as fronteiras terrestres e marítimas, para assumir a direção política do bloco no poder em torno de um projeto que combina o neoliberalismo extremado com o reforço ainda maior dos elementos fascistas e autoritários da autocracia burguesa. Todavia, trata-se da restauração do cesarismo militar sem a eliminação formal de fundamentos da legalidade democrática – Congresso Nacional, sistema partidário, dinâmica eleitoral, estrutura sindical – e mesmo com a manutenção de certa margem de ação política para a esquerda institucional, como a constituição de oposição parlamentar, a exploração das possibilidades de apelação ao Poder Judiciário e mesmo determinados espaços de denúncia e crítica. Sendo assim, a tendência ao cesarismo militar no governo Bolsonaro se dá em função do programa político que combina a retomada dos níveis de valorização do capital e acumulação capitalista anteriores à crise econômica com o aprofundamento da subsunção econômica e política do mundo do trabalho ao capital por meio da intensificação da superexploração do trabalho e do aniquilamento/enfraquecimento das organizações do mundo do trabalho, de modo a reduzir seu espaço político ao estritamente necessário para a mediação do conflito político e social em seu momento mais agudo.

4. O “partido financeiro” é encabeçado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e composto por um conjunto de quadros oriundos do sistema financeiro e de determinadas instituições acadêmicas defensores de uma perspectiva neoliberal extremada e que ocupam os principais postos econômicos do governo e das empresas estatais – Banco Central, Secretaria do Tesouro Nacional, Petrobrás, Caixa Econômica, Banco do Brasil, BNDES. Sua perspectiva é a de consumar o programa de “reformas” neoliberais iniciado com o governo Temer, radicalizando o ataque aos direitos sociais e trabalhistas, a privatização das empresas estatais e do patrimônio público, além de abrir a economia brasileira ainda mais para o capital externo, tendo em vista o aprofundamento, praticamente sem restrição, do processo de integração orgânica liberal periférica, de financeirização da economia e de especialização na produção de commodities/industrialização de matérias primas minerais e agropecuárias como padrão de acumulação do capital.

5. O “partido da Justiça” é dominado pelos setores que conduziram a Operação Lava Jato e no processo de perseguição político-judicial ao petismo/lulismo, encabeçado pelo ex-juiz Sérgio Moro, que ocupa a pasta da Justiça. Além das funções tradicionais, esta pasta também passa a comandar a segurança pública e a tutela estatal sobre os sindicatos, evidenciando a tendência de criminalização ainda maior dos movimentos e das lutas sociais e de reforço da repressão policial. Neste aspecto terá um papel decisivo no cerco à esquerda e às organizações do mundo do trabalho por conta da nova forma “judicial” que a repressão politica tem assumido no país. Ou seja, diferentemente da Ditadura Militar, em que os setores de oposição eram criminalizados por “subversão” e “crime contra a segurança nacional”, no regime político que vem se desenhando a partir do golpe de 2016 a repressão política tende a ocorrer sob a bandeira do combate à corrupção, à lavagem de dinheiro, ao uso “indevido” dos recursos e bens públicos e ao tráfico de drogas, como evidenciam a prisão de Lula, a sentença proferida recentemente contra as lideranças do movimento de luta pela moradia que ocupavam o prédio que desabou em São Paulo-SP em 2018 e o “pacote anticorrupção” anunciado pelo ministro da Justiça. Este último, além de ampliar o conceito de “organização criminosa”, abrindo brecha para a criminalização de movimentos sociais e organizações de esquerda, ainda propõe uma verdadeira “licença para matar” para os agentes do aparato repressivo, tornando ainda mais impune a violência policial. Esta “inovação” é um elemento importante da nova institucionalidade política, pois permite que se mantenha a “fachada democrática” do regime ao mesmo tempo em que se intensifica o controle sobre o conflito social e político. Além disso, o “partido da Justiça” buscará manter a todo custo os privilégios corporativos adquiridos ao longo dos anos por juízes, procuradores e demais agentes do poder judiciário e de assegurar lugar destacado a estes segmentos no processo de reconfiguração bonapartista/cesarista do Estado e de sua gestão. No caso do ex-juiz Sérgio Moro, há ainda o interesse individual manifesto na promessa de sua indicação para o STF em 2020.

6. O “partido fisiológico” é o mais heterogêneo, aglutinando desde o clã Bolsonaro e os adeptos do “olavismo”, às forças de direita vinculadas ao agronegócio/latifúndio, às igrejas evangélicas e à burguesia de serviços (saúde, educação, comércio, etc.), distribuídas por diversos partidos, mas em grande medida organizadas na chamada bancada BBB (boi, bala e bíblia). Expressa politicamente arranjos que envolvem forças sociais e econômicas aliadas subalternas das forças hegemônicas do bloco no poder, em articulações que integram as esferas pública e privada. Sua perspectiva é a de fortalecer sua inserção institucional e o acesso ao fundo público, viabilizado pelo seu peso político-eleitoral, edificado com base no conservadorismo político e cultural e no antipetismo. Em contrapartida, proporcionam ao bloco do poder e ao governo Bolsonaro o encobrimento político-ideológico da recomposição da base e da superestrutura em curso pela via da tergiversação gerada pela ofensiva moralista, conservadoras e obscurantista.

7. Em termos políticos, a promoção e consolidação do cesarismo militar implicam no estabelecimento de uma aliança entre os militares e o grande capital, especialmente o capital financeiro internacional, em torno do programa neoliberal extremado. A compreensão dessa aliança demanda uma breve digressão. A adesão dos militares ao neoliberalismo se inicia com o colapso do desenvolvimentismo e o fim da Guerra Fria, a partir do final dos anos 1980, e se desdobra ao longo das décadas seguintes sem que determinados elementos da pauta especificamente militar fossem abandonados. Entre eles os principais são: sua postura tutelar sobre o sistema político, incluindo-se aí o controle sobre o aparato repressivo e de informações; o não “revanchismo” em relação aos crimes cometidos durante a Ditadura Civil-Militar; a valorização da indústria bélica; a modernização permanente em termos técnicos e materiais; a soberania sobre a “Amazônia Verde” e a “Amazônia Azul” (o mar territorial brasileiro, particularmente nas bacias petrolíferas) e a manutenção de determinados privilégios corporativos diante dos ataques aos direitos sociais e trabalhistas – aposentadorias especiais, valorização salarial independente do restante do funcionalismo público, etc. Isto implicou numa postura política relativamente passiva durante os anos 1990 diante do processo de privatização das empresas estatais, de abertura econômica, de desindustrialização relativa e de reprimarização econômica. Políticas estas que enterraram a perspectiva desenvolvimentista e industrialista defendida pelos militares desde os anos 1930 em consonância com seu conceito de segurança nacional. No atual momento, diante da tendência de fratura da ordem mundial criada após o colapso da URSS, marcada pelo fracasso das tentativas norte-americanas de imposição de uma hegemonia unilateral, o que culminou nas atuais disputas geopolíticas e comerciais com a China, a Rússia e a União Europeia, os militares parecem retomar a perspectiva tradicional da Aliança Ocidental sob comando norte-americano, na expectativa de recuperar uma função “pretoriana” na América Latina em relação aos movimentos, partidos e governos de esquerda, sem, porém, abdicar de sua condição de potência emergente. Esta perspectiva é alimentada pela própria debilidade militar brasileira num cenário de acirramento dos conflitos interimperialistas e por um cálculo que vislumbra a obtenção de algumas vantagens políticas, bélicas e materiais.

8. Esta nova posição representa um recuo em relação ao protagonismo internacional assumido pelo país na última década e meia em termos diplomáticos, imperialistas e militares (em menor medida) e à própria orientação neoliberal moderada desenvolvida pelos governos petistas. O auge desta orientação se deu com o apoio dos militares à política externa dos governos petistas no tocante à expansão imperialista das empresas localizadas no país, ao privilegiamento das relações com países do eixo Sul-Sul, ao estabelecimento de um conjunto de iniciativas de caráter militar em defesa da soberania brasileira sobre a “Amazônia Verde” e a “Amazônia Azul”, por vezes em parceria com outros países como no caso dos exercícios militares conjuntos com a África do Sul e a Índia. No entanto, a própria fragilidade do imperialismo brasileiro diante não apenas das potencias imperialistas tradicionais, mas também das potências emergentes, ainda mais debilitada com os efeitos econômicos da operação Lava Jato sobre algumas das “campeãs nacionais” que protagonizaram grande parte deste movimento expansivo com destaque na América Latina, na África e na Ásia, tornou a manutenção desta orientação cada vez mais difícil diante do novo cenário internacional inaugurado pela ascensão do “trumpismo” nos EUA. Portanto, este reposicionamento parece expressar não somente a afinidade ideológica do bolsonarismo com o “trumpismo” e o ideário da extrema direita norte-americana, bem como a perspectiva de obtenção de vantagens no tocante aos armamentos, tecnologia, aumento de contingentes e assunção de outras funções no aparelho de Estado que o envolvimento em uma escalada militarista no continente sul-americano poderia trazer, mas também o reflexo da fragilização do imperialismo brasileiro no novo cenário interno e internacional. Apoiado nas “campeãs nacionais”, atuantes nos ramos de combustíveis fósseis, mineração, infraestrutura e proteína animal, ao imperialismo econômico brasileiro correspondia um imperialismo político light nas relações Sul-Sul, calcado em variado elenco de acordos comerciais, “cooperações técnicas”, parcerias diplomáticas e alianças políticas, que permitiam a expansão capitalista brasileira em escala internacional, absorvendo excedentes gerados externamente. No entanto, sua fragilização tende não só a reiterar a urgência do aprofundamento da superexploração do mundo do trabalho no plano interno, mas pode ter concorrido para a reorientação da política militar não só na direção do cesarismo militar, mas também na implementação de um imperialismo político hard militarmente sustentado em relação à determinados países da América Latina, como Venezuela, Bolívia e mesmo Paraguai e Equador. Isto não significa que os militares aderem integralmente à política externa verbalizada pelo ministro das Relações Exteriores e pelo clã Bolsonaro, marcada pela total subserviência ao “trumpismo” e suas diatribes, pois implicaria em reversão da perspectiva apresentada na Estratégia Nacional de Defesa e na Lei Nacional de Defesa, onde o Brasil é visto como uma potência emergente, com interesses próprios a defender nos planos diplomático e militar. Neste último quesito, busca-se fortalecer a capacidade dissuasória do país, com vistas à evitar rivalidades e conflitos. Esta clivagem entre a perspectiva dos militares e a do bolsonarismo pode ser percebida na postura reticente de figuras do “partido militar”, como Mourão, no tocante à mudança da embaixada brasileira para Jerusalém, à uma disputa comercial com a China, à criação de uma base militar norte-americana no país e até na questão da Venezuela. Por enquanto, apesar da postura belicosa e agressiva do Ministério das Relações Exteriores, os militares afirmam não pretender intervir militarmente na Venezuela, porém, a situação pode mudar caso haja uma guerra civil envolvendo tropas colombianas, norte-americanas e organizações da esquerda armada como as FARC e o ELN e a expansão das operações militares para o território brasileiro. 

9. Ao lado disso, é importante considerar que há outro ponto de afinidade entre os militares e o bolsonarismo, qual seja, uma espécie de aggiornamento – ou atualização de princípios – da doutrina de segurança nacional, particularmente da “teoria da guerra revolucionária”, que incorporou temas da pauta cultural da extrema direita norte-americana, desenvolvida a partir dos anos 1990, e que no país se expressa de modo mais espalhafatoso no “olavismo”, mas também no neopentecostalismo e no neofascismo. Segundo a nova orientação, após a derrota da esquerda armada e o colapso da URSS e do “bloco socialista” os comunistas abandonaram a estratégia da conquista do poder pela via das armas e da tomada do Estado e passaram a adotar a estratégia da “guerra cultural” por meio da dominação ideológica e da conquista do Estado “por dentro”, implantando o socialismo de maneira subliminar e progressiva. Segundo esta interpretação, a inspiração para esta estratégia estaria nos escritos de Gramsci, daí a crítica ao “gramscismo” ou “marxismo cultural”, e se manifestaria na defesa do “globalismo”, que minaria a identidade nacional própria de cada povo e os valores patrióticos; na defesa das pautas ditas “pós-modernas” (“politicamente correto”, “ideologia de gênero”, multiculturalismo, ambientalismo, ativismo social, feminismo, laicismo/ateísmo, antirracismo, direitos para minorias, etc.), que minariam os valores da família, da religião, da coesão social, da propriedade e do próprio Ocidente, e na defesa do intervencionismo estatal, que criaria o “socialismo” por meio da submissão do mercado à perspectiva ideológica da esquerda, não à racionalidade própria da eficácia econômica e do progresso. Daí não apenas a adesão ao neoliberalismo extremado e à ideia de “Estado mínimo”, mas uma perspectiva de combate ideológico-cultural expresso na defesa da “escola sem partido”, na identificação pura e simples das ONG’s vinculadas à defesa dos direitos humanos com os interesses estrangeiros, na desqualificação do racismo, do machismo, etc., como mero “discurso de vitimização”, além da criminalização dos movimentos sociais e partidos de esquerda. Há que se perguntar se os militares que se identificam com esta nova doutrina também acreditam que “a terra é plana”, ou que o criacionismo tem o mesmo estatuto de verdade que o evolucionismo, mas seu histórico anticomunismo alimenta hoje uma perspectiva ideológica que em linhas gerais é defendida por Bolsonaro e seus adeptos e que se apresenta com muita força na composição do governo.

10. Portanto, após décadas de desenvolvimento capitalista baseado na internacionalização econômica, na desindustrialização relativa, na reprimarização econômica, na regressão neocolonial e na precarização do mercado de trabalho, o projeto desenvolvimentista conservador foi deixado pra trás pelos militares em favor de uma perspectiva de acomodação com estes novos imperativos da acumulação capitalista na periferia. Assim, tornou-se possível a adesão dos militares, ou dos setores que hoje hegemonizam as Forças Armadas (FA), à perspectiva neoliberal extremada, particularmente no tocante aos serviços e direitos sociais e o compartilhamento da crença de que a eliminação dos controles políticos à movimentação do capital pode atrair investimentos e favorecer a retomada da economia. Some-se a isso a crença de que o aniquilamento/enfraquecimento das organizações do mundo do trabalho é condição para o restabelecimento da ordem social, para a soberania nacional e a restauração do “progresso”, o que se configura como política repressiva e de controle estrito dos movimentos sociais, partidos de esquerda e sindicatos de trabalhadores. No momento é muito difícil mensurar o grau de coesão dos comandantes militares em favor desta perspectiva e em detrimento da perspectiva anterior, mas o fato é que ela tem sido reverberada cada vez mais pelo alto comando das FA desde pelo menos o Golpe de 2016 e predomina entre os militares que compõem o governo Bolsonaro, conforme declarações dos generais Mourão, Augusto Heleno e Villas Boas. Além desta perspectiva neoliberal extremada, também é muito forte entre os oficiais do alto comando, que entraram para a carreira militar durante a Ditadura (como Bolsonaro), a identificação com o ideário de que os militares se distinguem dos civis por conta de seu compromisso patriótico com a nação e com a gestão racional e proba da coisa pública e com a pretensa “missão” das FA no que concerne à manutenção da ordem política e social. O fato de que os crimes cometidos pelos militares durante a Ditadura e depois nunca foram punidos e de que seu papel tutelar sobre os governos civis continuou vigorando com a redemocratização fortaleceu a manutenção deste ideário.


11. Portanto, esta situação fortalece a tendência ao cesarismo militar na medida em que favorece uma aliança desses setores militares com o grande capital tendo por eixo a pauta neoliberal extremada e a repressão ao mundo do trabalho, salvando os interesses corporativos dos militares diante da avalanche contra os direitos sociais e trabalhistas e o corte de gastos públicos. A tendência cesarista militar pode ser contrarrestada pelo fracasso da política “trumpista” de acirramento dos conflitos interimperialistas, pela pressão politico-diplomática internacional da UE, da China, da Índia e de países do hemisfério sul, pelo agravamento da crise econômico-social no Brasil, pelo acirramento das contradições entre o governo e setores do bloco no poder e pela capacidade de resistência e reação do mundo do trabalho e suas organizações. Diante disto, a perspectiva proto-fascista desenvolvida pelo bolsonarismo durante a campanha eleitoral e presente em setores do governo, incluído o clã Bolsonaro, deve se manter em estado de latência e ser mobilizada como elemento complementar no combate político-ideológico à esquerda e às organizações dos trabalhadores, o que não impede o acirramento das divisões e divergências no interior do governo, do campo governista no Congresso e no próprio bloco no poder. No partido do presidente um de seus filhos defende nada menos que uma “depuração” em seu interior, com a formação de um partido de extrema direita mais “ideológico”, de inspiração “olavista”, distinto dos grupos e parlamentares que se elegeram para o Congresso “pegando carona” na onda bolsonarista.   

12. Os constantes desmentidos a respeito de declarações de membros do governo e do próprio presidente sobre os mais variados assuntos revelam não apenas uma estratégica de comunicação destinada a criar uma “cortina de fumaça” em torno dos reais propósitos governistas, mas também o fato de que a unidade construída ao longo da campanha e da montagem da equipe governamental ainda é precária, e os diversos “partidos” e forças que o compõem lutam para conquistar espaço e se firmar. No momento, há uma movimentação que envolve setores da burocracia de Estado, da mídia (Globo, Folha de São Paulo) e do próprio governo para enfraquecer o clã Bolsonaro (presidente e seus filhos) como porta-voz e principal articulador político do campo governista através de diversas denúncias de corrupção, lavagem de dinheiro e provável ligação com o crime organizado (milícias) envolvendo a família, assessores e aliados próximos. Para além dos interesses corporativos presentes na cena (Globo e Folha, visando melhores condições na partilha das verbas publicitárias do governo) diversos setores políticos tem interesse no esvaziamento do clã Bolsonaro e dos setores do governo identificados com sua perspectiva fascista, visando reduzir sua influência politica à condição de força auxiliar e de tropa de choque no combate aos movimentos sociais, à esquerda e ao “marxismo cultural”. O primeiro deles é o próprio “partido militar”, para quem o enfraquecimento do clã Bolsonaro reforça a tendência cesarista que discutimos antes e fortalece a posição de figuras como o general Heleno e o general Mourão. Este último não só tem se manifestado sobre os mais variados assuntos, procurando se apresentar como uma liderança mais ponderada e “racional” em relação às bizarrices emitidas pelo próprio presidente e por alguns ministros, como tem procurado esvaziar politicamente figuras próximas de Bolsonaro e seus filhos, como Onyx Lorenzoni e Ernesto Araújo. Contra este último Mourão tem não só dado declarações que vão na contramão do que diz o chanceler, como tem criado uma “chancelaria paralela”, reunindo-se com embaixadores à revelia do ministro recém convertido ao “olavismo” e adepto de uma politica externa ao mesmo tempo regressiva e isolacionista que fere interesses de setores importantes do bloco no poder, como o agronegócio. O “partido financeiro” também se fortalece, na medida em que o presidente tem defendido uma reforma da previdência mais atenuada e os militares claramente imaginam-se fora do corte de benefícios e do aumento de obrigações. Por outro lado, com o avanço das investigações o “partido da Justiça” reforça seu papel no processo de repressão política e ainda pode manter a imagem como cruzado da anticorrupção, além de salvar-se do incêndio da reforma da previdência. Enquanto isso, as forças e lideranças dos partidos de direita tradicionais (MDB, DEM, PSDB, PP) aumentam o seu cacife na barganha com o governo e no encaminhamento das propostas governistas. Por fim, movimentos e lideranças neoliberal extremadas que apoiaram Bolsonaro em nome do antipetismo e do pretenso combate à corrupção buscam capitalizar politicamente em cima do episódio, se qualificando como alternativa ao bolsonarismo no campo da extrema direita. Pode ser que a fervura venha a abaixar com o atendimento pelo governo dos interesses de setores da mídia, com a definição de uma proposta consensual de reforma da previdência e com a formação do campo governista no Congresso, ou venha a aumentar até a consolidação do cesarismo militar e/ou o desencadeamento de um movimento de massas pelo impeachment, mas podemos afirmar que certamente o clã Bolsonaro, incluído o presidente, sairá da crise politicamente mais fraco do que entrou.

13. A formação de um movimento de massas pelo impeachment e contra as medidas propostas pelo governo depende não apenas da desilusão dos eleitores de Bolsonaro com seu herói ou com as defecções que o governo venha a sofrer no campo da direita e da extrema direita, mas principalmente da capacidade dos movimentos sociais, das organizações e partidos de esquerda conseguirem articular uma frente ampla para além do plano institucional. No momento esta perspectiva parece distante pelas seguintes razões: a) os partidos de esquerda com representação no Congresso (PT, PSOL, PSB, PDT, PC do B) estão mais focados em viabilizar sua sobrevivência institucional do que em articular um movimento de massas de resistência e mobilização contra o governo. A votação para a presidência da Câmara revelou esta perspectiva na medida em que enquanto determinados partidos preferiram lançar chapa própria, outros optaram por negociar cargos na mesa diretora com a chapa governista de Rodrigo Maia (DEM). A divisão destes mesmos partidos em blocos partidários distintos e rivais também ilustra este cenário. Mais uma vez a lógica institucional prevalece sobre a perspectiva de organização e mobilização dos trabalhadores. b) as divergências entre PT e PDT se acentuaram após a posse, com Ciro Gomes tecendo críticas ainda mais duras à direção politica de Lula e ao PT com intenção de se qualificar como liderança maior da oposição de esquerda num cenário pós-Lula. c) as principais centrais sindicais já sinalizaram ao governo disposição de diálogo e negociação em torno da reforma da previdência, demonstrando não só o peso da perspectiva conciliadora e burocrática em seu modus operandi, mas desconhecimento em relação ao caráter real do governo. Por conta disto, as tentativas de constituição de uma frente ampla contra as reformas neoliberais ainda se apresentam de modo muito incipiente, com a ocorrência de reuniões aqui e acolá em alguns lugares e a definição de pautas de luta comum, porém, sem uma articulação mais ampla e, principalmente, sem o estabelecimento de diálogo com os setores proletarizados que votaram em Bolsonaro e se iludem quanto ao caráter de seu governo.

14. Porém, o agravamento da crise politica pode criar as condições para a superação desta situação muito rapidamente, favorecendo a mobilização de massas e impedindo que sua solução se dê nos marcos da consolidação do cesarismo militar e dos trâmites institucionais que permitam a ascensão do general Mourão à presidência (pelo impeachment ou pela renúncia de Bolsonaro), em favor da convocação de novas eleições e da revogação das medidas que criminalizam partidos de esquerda e movimentos sociais. Nesta situação, é fundamental que a esquerda socialista avance na tentativa de constituição da frente de esquerda e da propositura de um programa que apresente não apenas um caráter antineoliberal e antifascista, mas que contenha elementos socialistas e de poder popular.