Análise de Conjuntura nº 004/2019

Consolidado em Julho de 2019.

1. Nesses pouco mais de 200 dias de governo, Bolsonaro (e suas bases de sustentação) tem sido eficaz em promover discursos diversionistas e mentirosos calcados em aspectos como costumes, preconceitos regionais e contestações científicas que levam muitos a classificá-lo como idiotia. Todavia, a cada semana nos deparamos em um novo estágio de destruição dos direitos sociais, trabalhistas e democráticos que, com maior ou menor efetivação, se faziam presentes no Estado. Também nos deparamos com um aparato legal mais robusto voltado para a destruição de legislações que limitam o impulso reprodutivo destrutivo do capital sobre o trabalho e a natureza, a privatização da esfera pública e o controle e repressão dos trabalhadores e movimentos sociais.

2. Bolsonaro tem sido capaz de avançar rapidamente o projeto do Golpe de Estado de 2016, conduzindo o país na direção de uma: i. Economia financeirizada, desindustrializada, desnacionalizada e especializada na produção de commodities agropecuárias e minerais, articulada com base em um mercado que exclui amplos setores sociais do consumo e generaliza o trabalho precarizado; ii. Formação social polarizada (social, política e economicamente) e marcada por uma ampla segregação social; iii. Estrutura jurídico-política marcadamente justicialista e militarista e “tolerante” quanto a organização de estruturas paramilitares, por um lado, e restrito quanto ao acesso a direitos e representação popular, por outro; iv. Estrutura ideológica e cultural calcada no empreendedorismo e na sociedade meritocrática e individualista, naturalizadora da desigualdade, da repressão e da violência orientada aos trabalhadores e camadas populares. Em contraposição, emergiu um movimento de massas, estudantil e popular, a partir do 15M, marcado por uma perspectiva antigolpe e em defesa da educação, dos direitos sociais e das liberdades democráticas, em antagonismo crescente com a perspectiva cesarista bolsonarista. A presente análise de conjuntura de julho da EFS parte dessas considerações iniciais.

3. O 15M, o 30M e o 14J evidenciam a retomada das ruas pela oposição de esquerda (PT, PC do B, PDT, PSB, PSOL, PSTU, PCB) e o movimento dos trabalhadores numa perspectiva antineoliberal extremada e antigovernista que foi adquirindo um caráter antigolpista na medida em que o envolvimento da Lava Jato e do sistema judiciário no golpe foi se evidenciando com as reportagens do The Intercept.

4. Do lado burguês a polarização política e social se reflete na tentativa de unificação em torno da defesa do golpe e da plataforma neoliberal extremada, com Bolsonaro tentando cavalgar esta unidade e aparecer como seu condotieri, enquanto alternativa de extrema-direita, de um lado; e o “Centrão”, liderado pelo presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, tentando assumir a direção política do bloco no poder, constituindo um grande pacto burguês em torno das “reformas”, enquanto alternativa de centro-direita, de outro. Pode-se afirmar a existência incontestável de uma convergência entre extrema-direita e centro-direita no tocante a pauta econômica, com disputa e conflito entre essas tendências políticas burguesas em torno da conquista da direção do bloco no poder, do desenho jurídico-político a ser dado ao “novo” regime político e das formas do “fazer política” no âmbito dos poderes, instâncias e instituições do Estado. Do lado das classes subalternas, há um processo de retomada das ruas com base na crescente indignação com o governo e suas pautas regressivas, na denúncia do golpe e da manipulação eleitoral em 2018, porém ainda incapaz de resistir à ofensiva conservadora. Pode-se afirmar a existência de posições distintas não somente quanto ao lugar da bandeira “Lula Livre”, mas também quanto ao peso dado às lutas populares de massas e à institucionalidade, bem como da disposição de negociação com as forças de centro-direita no Congresso Nacional e demais poderes legislativos.

5. Apesar das contradições entre o bolsonarismo, o partido militar, o judiciário e o financeiro no interior do governo e deste com o Congresso, o STF, setores da mídia e o próprio mercado, as denúncias contra Moro e a Lava Jato, que expõe à luz do dia a trama golpista que levou ao impeachment, à inabilitação eleitoral de Lula e à vitória de Bolsonaro, acenderam o sinal de alerta nos salões burgueses, gerando uma perspectiva defensiva em torno da blindagem de Moro, da Lava Jato e de todos os agentes envolvidos na trama, desde a PGR e o STF até a grande mídia. Bolsonaro aproveita a ocasião para buscar reforçar sua autonomia política e associar a defesa do golpe à defesa do seu governo e de sua perspectiva fascistizante. No partido militar as manifestações de unidade em torno da defesa do golpe e de seus desdobramentos partiram de ninguém menos que o general Villas Boas, que também se manifestou a favor de Moro; e do general Heleno, que atacou Lula abertamente, evidenciando o veto militar à qualquer tentativa de anulação de sua prisão. Da parte da grande mídia a postura predominante é a de reverberar a tese diversionista de que o comportamento de Moro e dos procuradores foi “normal” e de que as denúncias não devem ser consideradas, pois foram captadas de maneira criminosa e podem conter fraudes. A recente prisão dos supostos hackers pela Polícia Federal e a tentativa de associá-los ao PT demonstra que buscam reforçar esta tese e mobilizar as bases bolsonaristas em torno do antipetismo.

6. Apesar da baixa mobilização bolsonarista do 26M, que atraiu os seus setores mais empedernidos, mas não toda a direita, nem mesmo os aparelhos ultraliberais como MBL, Vem Pra Rua e Revoltados Online, Bolsonaro buscou reagir apoiando Moro e a Lava Jato e procurando criar as condições para uma escalada autoritária que desemboque no cesarismo bolsonarista. Ao mesmo tempo em que tenta enfraquecer a ala militar confrontando-a abertamente em determinados aspectos (corte de recursos, desprestígio de eventos militares, ofensas pessoais à comandantes, além da verborragia ofensiva contra os nordestinos, contrapondo-se diretamente ao discurso da unidade nacional tão caro aos militares), também confronta a perspectiva de um grande pacto em torno do Congresso e do Centrão criticando medidas que tolhem sua autonomia na indicação de cargos, abolindo ou esvaziando os conselhos sociais que assessoram a presidência, esvaziando a força do DEM dentro do governo (Onyx Lorenzoni), atacando a autonomia e cortando o orçamento das universidades, adotando medidas e um discurso que tenta atender e mobilizar a sua base social (afrouxamento do controle sobre agrotóxicos, favorecimento da economia informal, pretensão de nomear o filho para a embaixada dos EUA e de nomear um evangélico para o STF), além de insistir na liberação do porte de armas, o que favorece a militarização de sua base de apoio com vistas à constituição de milícias bolsonaristas, por exemplo, junto a segmentos dos caminhoneiros e dos fazendeiros. Nesta perspectiva, Bolsonaro apoiou a convocação da mobilização bolsonarista do 30J, buscando consolidar sua base de apoio, apesar da queda constante na popularidade no cômputo geral. Diferentemente do 26M, o 30J foi mobilizado em defesa de Moro e da Lava Jato, atraindo o apoio das organizações de direita que se abstiveram de participar no ato anterior. Apesar disso, e em que pese o fato de Bolsonaro manter um apoio de mais de 30% da opinião pública, o ato teve uma participação pequena, aquém do esperado e do conjunto de forças que se mobilizaram, evidenciando que a desilusão com o governo grassa também entre os que votaram e mesmo entre os que apoiam Bolsonaro. Daí a aceleração por parte de Bolsonaro da escalada autoritária e a tentativa de mobilizar suas bases mais orgânicas de apoio: a ala bolsonarista.

7. Paralelamente, os partidos que compõem o “Centrão”, sob a liderança de Rodrigo Maia, passaram a assumir crescente protagonismo na cena política, produzindo uma proposta alternativa para a Reforma da Previdência e articulando sua aprovação. Até o momento a empreitada foi bem sucedida, pois além da vitória folgada na votação em primeiro turno, o “partido” fisiológico ainda conseguiu barganhar com o governo a liberação de bilhões de reais para emendas parlamentares e criar um modus operandi de negociação e articulação que passa por fora do apoio do governo, mesmo quando envolve os partidos governistas. A recusa peremptória em acatar a proposta presidencial de conferir status especial aos militares na Reforma da Previdência evidencia esta autonomia relativa do “Centrão”. Nesta situação, Rodrigo Maia já desponta como candidato às eleições de 2022, constituindo-se como alternativa para o bloco no poder diante de possível da perda de legitimidade de Bolsonaro e/ou incapacidade de suplantar a instabilidade política e de promover a saída da crise econômica.

8. Na comparação entre o 15M, o 30M e o 14J percebe-se ainda a fragilidade de uma perspectiva contra-hegemônica, pois se o 15M reuniu o conjunto das classes trabalhadoras e suas organizações numa perspectiva de unidade entre trabalhadores formais e informais, classes médias não bolsonaristas, estudantes e juventude, o 30M já contou com uma postura mais reticente de setores do movimento sindical, enquanto o 14J contou com pouca participação dos estudantes e de setores dos trabalhadores informais. Isto evidencia que o apelo de luta contra a Reforma da Previdência não abrange o conjunto da classe trabalhadora, revelando o caráter defensivo da mera resistência ao corte de direitos. Apesar de o 14J ter sido uma greve geral expressiva, que revelou a capacidade de resistência e ação unitária do movimento sindical e popular, além de engrossar a retomada das ruas por esses movimentos e pela oposição de esquerda, a facilidade com que o “Centrão” aprovou a Reforma da Previdência em primeiro turno foi surpreendente. Mais do que isto, pontificaram a participação da esquerda institucional, particularmente dos governadores de oposição, na negociação em torno da ampliação dessa Reforma para os servidores estaduais e municipais e a inércia das centrais sindicais na hora decisiva. Portanto, a esquerda institucional se mostrou incapaz não só de reagir à avalanche, sendo engolida pela dinâmica institucional do Congresso, mas também de chamar a mobilização e a resistência a partir das ruas. Para esse desfecho também concorreu a avaliação de que o embate em torno da aprovação da Reforma da Previdência somente ocorreria a partir de agosto de 2019.

9. Esta tendência institucional também se revela no tocante às reportagens do The Intercept, pois tem redefinido o campo da luta política entre os setores de esquerda, em seu favor, na medida em que recolocam o tema do “Lula Livre” no centro da luta, mais do que a reversão do golpe e da pauta neoliberal extremada. Isto significa que ao mesmo tempo em que a esquerda institucional busca deslegitimar Moro, o governo Bolsonaro e o próprio golpe, também negocia uma versão “aceitável” da Reforma da Previdência e aposta na resistência ao seu aprofundamento por meio das instituições e do processo eleitoral. Ou seja, apostam na libertação de Lula recorrendo às mesmas instâncias que o colocaram na cadeia (STF e sistema Judiciário) ao mesmo tempo em que apostam numa espécie de “quanto pior, melhor”, visando constituir-se como alternativa nas eleições de 2020 e de 2022. Por conta disto, mesmo diante das evidências incontestáveis do caráter manipulado e fraudado do processo eleitoral de 2018 não há chamada para o que seria a pauta política da reversão do golpe e a restauração da democracia burguesa, ou seja, a anulação das eleições de 2018 em todos os níveis, a destituição do governo Bolsonaro, dos governos estaduais e dos mandatos parlamentares, a convocação de novas eleições gerais para 90 dias, a revisão dos atos da Lava Jato, o indiciamento de Moro e dos procuradores e a libertação imediata de Lula. Isto dificulta a constituição da Frente Ampla no campo institucional e enfraquece a resistência ao cesarismo bolsonarista, podendo ser desastrosa para apreservação das liberdades democráticas e o futuro da esquerda.

10. A afirmação dessa orientação da esquerda institucional concorre para o aprisionamento da esquerda a um processo institucional parlamentar calcado em: i. Condução de discurso retórico no Congresso Nacional de defesa das liberdades, dos marcos civilizatórios, da diversidade e do conhecimento científico, embalado para as mídias digitais; ii. Condução de crítica formal e de negociação informal com relação a centro-direita, em contraposição à extrema-direita, no que tange às pautas extra econômicas; iii. Condução da luta política com centralidade tática nas eleições de 2020 e 2022; iv. Deslocamento da contradição capital (capitalismo) versus trabalho (socialismo) para o segundo plano da luta política em favor da contradição ditadura (fascismo) versus democracia (liberalismo político), nação (frente patriótica) versus Estados Unidos/Europa (imperialismo/aliados internos); v. Reiteração dos movimentos populares à condição de força auxiliar da esquerda institucional. É fundamental contrapor a essa orientação da esquerda institucional uma linha política da esquerda socialista revolucionária que tenha como norte a compreensão de que a contradição capital (capitalismo) versus trabalho (socialismo) é a contradição principal presente na sociedade brasileira, cujo campo fundamental de luta de classes reside nos locais de trabalho, de moradia e de estudo, do campo e da cidade. A contradição entre o campo burguês e o campo popular deve subordinar e orientar as demais contradições – nacional versus imperialismo, liberdades democráticas versus liberalismo autoritário/fascismo.

ESCOLA DE FORMAÇÃO SOCIALISTA