Análise de Conjuntura Política nº 003/2019

Consolidado em 21 de maio de 2019


1. A conjuntura brasileira está marcada pela tentativa das forças sociais e políticas que integram o bloco no poder e seus aliados de implementar o projeto do Golpe de Estado de 2016 e impedir a resistência das forças que integram a oposição de esquerda, aí incluídos os partidos de esquerda (PT, PSB, PSOL, PDT, PC do B, PCB), sindicatos, movimentos populares e entidades ligadas ao mundo do trabalho.
Projeto que tem como características: i. Configuração de um padrão de acumulação capitalista profundamente apoiado no capital financeiro, no agronegócio, na agro e minero-industrialização de exportação e nas filiais de grupos oligopolistas internacionais; ii. Conformação de uma ordem social marcada por amplas parcelas das classes trabalhadoras submetidas à informalidade, precarização, marginalização social e acesso restrito aos direitos sociais; iii. Reafirmação da autocracia burguesa mediante a radicalização dos seus aspectos políticos restritivos e repressivos em relação à representação política de esquerda e dos trabalhadores nos limites de uma institucionalidade liberal representativa ultra restritiva e à criminalização dos segmentos sociais pauperizados; iv. Configuração de uma vasta e diversificada rede de organizações da sociedade civil do capital sedimentando um novo padrão de hegemonia com base no sistema de mídia, nas igrejas neopentecostais e nas novas organizações/movimentos neoliberais extremados. A crise orgânica que acomete a sociedade brasileira no atual período da luta de classes sofreu um processo de aprofundamento desde o carnaval, o que gerou um contexto de maior dificuldade para a implementação do projeto do Golpe e, por consequência, de maior disposição de resistência à sua implementação. Todavia, apesar de ainda não ter ocorrido uma modificação significativa na correlação de forças sociais, que permanece amplamente favorável ao capital, há de se reconhecer que está se conformando um campo social que abre condições mais propícias para essa modificação em favor dos trabalhadores.

2. Enquanto o cenário econômico piora visivelmente nos planos externo e interno, as disputas no interior do governo se intensificam, ao mesmo tempo em que se torna crônica sua incapacidade de articular uma base política sólida e ampla o suficiente para lhe dar sustentação no Congresso Nacional e junto ao sistema de representação política; combinação que tem acarretado um processo acelerado de deslegitimação do presidente. Ampliam-se e se tornam cada vez mais explícitas as demonstrações de descontentamento por parte de setores do bloco no poder, e mesmo do eleitorado bolsonarista, com as trapalhadas do governo e sua incapacidade operativa. Paralelamente, neste período a oposição de esquerda não tem conseguido construir uma ação unificada para além da inserção institucional e de pautas específicas, determinadas pelo calendário do governo, constituindo uma frente política permanentemente mobilizada e capaz de apresentar um projeto alternativo ao neoliberalismo extremado e ao lulismo. Neste cenário, as tendências cesaristas tem se fortalecido junto ao bloco no poder e junto ao campo golpista, como caminho para superar a crise e manter a ofensiva do capital sobre os trabalhadores. No atual momento, além do cesarismo militar, colocado em cena desde o pronunciamento do Comandante do Exército contra a concessão de habeas corpus para Lula, em abril de 2018, o próprio presidente busca se fortalecer politicamente e se autonomizar em relação à tutela militar, tentando construir uma perspectiva cesarista em torno de si mesmo.

3. Diante da acelerada perda de legitimidade política por conta do conteúdo antipopular de seu programa de governo, do caráter errático de suas iniciativas e propostas, das resistências políticas e institucionais enfrentadas junto ao Congresso, ao Poder Judiciário e à maior parte da mídia, bem como do acirramento das disputas entre os “partidos” que compõem o governo, Bolsonaro, com apoio dos filhos, de Olavo de Carvalho e de alguns auxiliares próximos, desencadeou uma ofensiva em três frentes: a) mobilizar a base social bolsonarista constituída durante a campanha eleitoral, particularmente os setores que compõem o seu núcleo duro, alegando a impossibilidade de governar nas atuais condições institucionais e ter que negociar com as forças da “velha política”, atendendo seus interesses reais e imaginários e brandindo suas palavras de ordem; b) ganhar a confiabilidade do capital financeiro internacional, constituindo-se como único capaz de “cavalgar” a crise e resolvê-la em seu favor, re-centralizando o sistema político em torno da presidência e derrotando definitivamente a perspectiva do mundo do trabalho; c) adquirir autonomia política diante dos “partidos”, instituições e forças políticas que podem disputar com ele a capacidade de direção política do bloco no poder ou fazer frente à sua escalada fascista. Desde o surgimento das primeiras dificuldades para a aprovação da reforma da previdência e do pacote anti-crime de Sérgio Moro, Bolsonaro demonstra indisposição para negociar com os partidos e o Congresso, atribuindo à estas medidas um caráter salvacionista e imperativo para resolver a crise econômica e social, reforçando a perspectiva autoritária em sua base social e criando o discurso justificador de um hipotético autogolpe. Por conta disto, desde março o presidente tem buscado desqualificar instituições e forças políticas, adotando uma postura de “morde e assopra” em relação aos aliados efetivos ou circunstanciais, numa tática típica do método cesarista, buscando se autonomizar politicamente e se constituir como fonte de poder em relação ao Congresso Nacional, aos partidos do chamado “Centrão”, ao “partido do Judiciário”, ao “partido militar” e mesmo em relação ao “partido financeiro”. Bolsonaro adota o jogo do “morde e assopra” em relação a cada um desses grupos, instituições e frações de classes, buscando “pairar” sobre todos a partir de um programa neoliberal extremado e fascistizante que sedimente uma aliança policlassista, mas que priorize os interesses do capital “financeiro”, entendendo por este termo não só o capital portador de juros (bancos, fundos, etc.), mas todas as frações do grande capital estrangeiro ou “nacional” que atuam combinadamente em vários ramos econômicos, monopolizam o mercado e tem na especulação financeira uma fonte importante de valorização, principalmente com a dívida pública. Dessa aliança devem participar os setores propriamente bolsonaristas presentes no “agronegócio”, no médio capital comercial e de “serviços”, entre os grandes proprietários de terra, no capital e ramos industriais, na pequena burguesia urbana e rural e na alta classe média, com o apoio de massa da baixa classe média e de setores do proletariado. É fato que há contradições entre o governo e cada uma dessas classes ou frações de classe. Para citar alguns exemplos, o capital imperialista brasileiro manteve certa distância de Bolsonaro durante a campanha eleitoral e se ressente de sua política externa pró-EUA e anti-China, MercoSul e BRICS; o mesmo pode ser dito de setores do capital externo que atuam no país e cujos negócios dependem das relações econômico-comerciais com o eixo Sul-Sul; diversos ramos da cadeia produtiva do agronegócio e do setor mínero-industrial tem perdido mercados no mundo árabe por conta da aproximação diplomática com Israel; o capital industrial sequer tem um ministério para chamar de seu e vive de “pires na mão” atrás de subsídios e desonerações. Estas contradições se refletem nas dificuldades enfrentadas pelo governo na relação com o sistema de representação política e as instituições estatais e outros aparatos políticos e culturais do bloco no poder. No entanto, diante do agravamento da crise orgânica, Bolsonaro busca unificar esta base no “atacado” por meio da eliminação de direitos sociais e trabalhistas e do barateamento da força de trabalho (denominador comum que unifica todos os interesses burgueses), do rentismo, das privatizações, do avanço da fronteira agrícola sobre florestas e comunidades tradicionais e da eliminação dos controles ambientais, do aumento da repressão e da violência contra os pobres, do reforço da segregação social e do elitismo. Esta pauta já vem sendo aplicada, como temos destacado em outras análises de conjuntura que apresentamos, com graves consequências negativas para os estatutos jurídico-políticos que garantem os direitos sociais e civis e para a própria configuração da democracia burguesa, mas a intenção é radicalizá-la e dar-lhe maior organicidade.

4. De um lado, Bolsonaro busca recompor o apoio de sua base eleitoral, relativamente abalada com os “zigue-zagues” do governo, atribuindo às condições institucionais, à herança petista e ao peso da “velha política” as dificuldades para governar, criando a justificativa para algum tipo de “autogolpe” e fechamento do regime, e adotando ou propondo medidas que contemplem seus interesses reais ou imaginários. Desde a emergência das primeiras dificuldades, atendeu o agronegócio, desmontando as estruturas de fiscalização e controle de desmatamento e mudanças climáticas (ICMBio, IBAMA e o próprio Ministério do Meio ambiente); liberando novos agrotóxicos; tentando transferir para o Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento a demarcação das terras indígenas e abrindo-as para investimentos estrangeiros; apresentando decreto que amplia o porte de armas para que proprietários rurais possam defender suas terras dos “invasores” à bala, e se comprometendo em perdoar as dívidas dos ruralistas com a União. Aguçou o antipetismo, o elitismo fascistizante e o conservadorismo cultural da classe média bolsonarista adotando uma política de maior arrocho do salário-mínimo; propondo um radical corte de verbas para a educação acompanhado de desqualificação das universidades públicas; ativando a fantasmagoria do “marxismo cultural” e pregando o obscurantismo e a perseguição política; esvaziando políticas sociais compensatórias como o “Minha Casa, Minha Vida” e desmontando os conselhos sociais criados na Era Lula; vetando propaganda “políticamente correta” do Banco do Brasil, fazendo declarações homofóbicas e apoiando aberta ou veladamente os ataques das redes sociais bolsonaristas ao Congresso, ao STF e aos militares em nome da “nova política”. Por fim, acenou para os caminhoneiros suspendendo o reajuste do diesel.

5. Ao mesmo tempo, Bolsonaro tenta desqualificar e enfraquecer grupos políticos e instituições que podem fazer frente à sua perspectiva fascistizante e que se constituem como centros alternativos de poder, buscando seu apoio, praticando o jogo de “morde e assopra”, próprio do cesarismo. Por isso, ao mesmo tempo em que joga a responsabilidade pela não aprovação da reforma da previdência sobre o fisiologismo do Congresso e do “Centrão”, trava uma queda de braço com Rodrigo Maia e desautoriza até mesmo seus correligionários; aceita atenuar propostas do projeto original dessa reforma (benefício de prestação continuada e aposentadoria rural) e se compromete a liberar verbas e cargos para comprar o apoio dos parlamentares. Com o STF e o “partido do Judiciário” o procedimento é parecido: afirma respeitar a autonomia do STF, mas apoia o ataque das redes bolsonaristas a determinados ministros e sua pretensão de investigar os mesmos; defende o projeto anticrime de Moro e a manutenção do COAF no Ministério da Justiça, mas desautoriza nomeações feitas pelo ministro, adota medidas francamente ilegais forçando sua adesão e descrédito (como no decreto de ampliação do porte de armas e no decreto que atribui à Secretaria Geral da Presidência o poder para nomear dirigentes das universidades federais com base em critérios ideológicos), além de tornar público o acordo em torno de sua indicação para o STF com o objetivo de deslegitimá-lo. Por fim, ao mesmo tempo em que isenta os militares na reforma da previdência, propõe a reestruturação da carreira e a melhoria salarial dos altos escalões e baixa decreto entregando as nomeações de dirigentes universitários para o general Santos Cruz, corta o orçamento militar em 43% e apoia os ataques desferidos por seus filhos e por Olavo de Carvalho contra Mourão, Villas Boas e o mesmo Santos Cruz.

6. De outro lado, estes grupos políticos e instituições buscam se contrapor à autonomia política e à perspectiva cesarista do presidente e do bolsonarismo, numa “guerra de guerrilhas” que alimenta a crise e as divisões no campo golpista. Enquanto exige cargos e verbas em troca da aprovação da reforma da previdência, o presidente do Congresso e o “Centrão” impõem ao governo o orçamento impositivo para emendas parlamentares, alteram parcialmente sua estrutura administrativa (COAF, FUNAI, etc.), convocam o ministro Weintraub para explicar os cortes na educação, rejeitam a proposta de ampliação do porte de armas, prometem aprovar legislação que limita o direito presidencial de legislar por medida provisória. O STF abre investigação sobre as fake news visando as redes sociais e órgãos de imprensa ligados ao bolsonarismo e à LavaJato; o Ministério Público abre o sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro para investigar suas vinculações com o crime organizado, o que pode atingir o próprio presidente e desencadear um processo de impeachment, enquanto o “partido do Judiciário” usa a LavaJato para bombardear a composição do governo com o “Centrão”. O “partido militar” desautoriza os delírios bolsonaristas na política externa (veta a intervenção militar na Venezuela, impõe limites à concessão da Base de Alcântara para os EUA, impede a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém, organiza reunião com embaixadores dos países árabes para evitar boicote às exportações brasileiras), busca criar canais próprios de interlocução com setores do bloco no poder (visita de Mourão à FIESP e discurso de apoio ao setor produtivo), disputa palmo a palmo com o bolsonarismo a direção do MEC, além de contestar a “guerrilha digital” das redes bolsonaristas e de Olavo de Carvalho em nome das Forças Armadas, defendendo o controle das redes sociais. Os pronunciamentos dos generais Mourão, Santos Cruz e Villas Boas refletem esta postura. Até o “partido financeiro” procura demarcar posição criticando abertamente a intervenção do presidente na campanha publicitária do Banco do Brasil e na política de preços da Petrobrás, isto quando o próprio ministro da Economia ameaça deixar o cargo se não tiver apoio do governo para aplicar seu programa econômico. Além disso, em graus variados, setores da grande mídia (principalmente Globo, Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, mas também Istoé e Veja) adotam uma postura francamente hostil ao presidente e aos setores bolsonaristas do governo e suas políticas para a educação, os direitos civis, a questão cultural, além da própria incapacidade do governo em aprovar a reforma da previdência, estancar a tendência econômica recessiva (aumento do desemprego e da inflação, expectativa de baixo crescimento econômico) e estabelecer um clima de confiança para novos investimentos, reverberando o descontentamento do bloco no poder, particularmente dos setores mais atingidos pela crise, como o industrial. Já há, no campo das forças golpistas, quem defenda abertamente o processo de impeachment e as investigações sobre Flávio Bolsonaro, o que pode alavancar esse processo ou, no mínimo, colocar o presidente na defensiva e forçá-lo a uma composição.

7. Neste cenário de acirramento da disputa pela direção política do governo e do bloco no poder, o confronto principal do presidente e do bolsonarismo tem sido com o “partido militar”, pois este parece se constituir na única força política no campo golpista capaz de cumprir esta função numa perspectiva cesarista. Enquanto Bolsonaro busca se autonomizar diante da tutela militar e tornar os militares reféns de suas iniciativas políticas, estes buscam manter a unidade entre os membros do governo, os comandantes da ativa e os baixos escalões (onde o bolsonarismo tem grande adesão) apelando para o “papel constitucional” das Forças Armadas e para sua condição de instituições permanentes. Se, de um lado, a disputa com os militares parece um suicídio político de Bolsonaro, pois solapa o apoio daqueles que tem sido seu principal sustentáculo político desde as eleições, de outro lado, ela é a condição para que ele possa mobilizar sua base social em torno de uma perspectiva cesarista própria, que lhe dê autonomia diante dos setores sociais e forças políticas que compõem o governo, o aparelho estatal, o campo golpista e o bloco no poder. Para tanto, o bolsonarismo precisa ir além da atual condição proto-fascista como base eleitoral e corrente de opinião difusamente organizada, avançando rumo a uma condição propriamente fascista, com a constituição de um “partido” que organize suas bases a partir de uma direção definida, mobilizador em termos sociais, institucionais e repressivos, portador do projeto político predominante no interior do governo e que seja capaz de dirigir o bloco no poder. Isto significa que a instalação do cesarismo bolsonarista implica em alguma modalidade de autogolpe, com o fechamento ainda maior do regime, restaurando a supremacia do Executivo sobre os outros poderes e instituições políticas e o reforçando ainda mais; eliminando o espaço político da oposição de esquerda por meios políticos, institucionais e repressivos; desmontando os institutos de proteção social e garantia dos direitos civis; cooptando os partidos e organizações de direita da sociedade política e da sociedade civil e ampliando o aparelho repressivo nos sentidos estatal e para-estatal. Para tanto, além do apoio que possui nas Forças Armadas (principalmente nos escalões inferiores), nas polícias e nas “milícias”, e que pode ser mobilizado numa situação de ruptura institucional, Bolsonaro vislumbra ainda a formação de grupos armados “civis” quando propõe a facilitação do porte de armas para a defesa armada do direito de propriedade e estimula a violência contra os movimentos e lutas populares e as organizações de esquerda. Neste sentido, como afirmamos anteriormente, em termos especificamente organizativos a viabilização do cesarismo bolsonarista depende da evolução do bolsonarismo em direção a um movimento fascista propriamente dito, com instrumentos de organização, mobilização e repressão de massas (partido, redes sociais e tropas de assalto). Porém, além da evolução interna do bolsonarismo, a viabilização do cesarismo presidencial depende também de outras variáveis, que abordaremos a seguir.

8. Em primeiro lugar, é preciso considerar o agravamento da crise econômico-social nos últimos dois meses e a piora do cenário externo, com a expectativa de eclosão de uma nova crise econômica mundial de grande envergadura, amplificada pela guerra comercial entre EUA e China. No cenário interno, a recessão iniciada em 2014 tem se acentuado em grande medida por conta da aplicação da política de austeridade econômica pelos sucessivos governos, com o aumento do desemprego, a alta da inflação, a retração dos investimentos e a queda na arrecadação, reduzindo as expectativas de crescimento do PIB semana após semana. No cenário externo, além dos sinais evidentes de emergência de uma nova crise neste ano ou em 2020, o aumento das alíquotas alfandegárias de parte a parte afeta o desempenho econômico das duas maiores economias do mundo, atenuando ou mesmo interrompendo a recuperação econômica norte-americana e reduzindo ainda mais o ritmo de crescimento chinês. O aumento da vulnerabilidade externa da economia brasileira após o golpe de 2016 torna a possibilidade de interrupção da recessão ainda mais remota, contestando na prática o argumento do Ministério da Economia quanto à necessidade do ajuste fiscal e de aprofundamento da pauta neoliberal extremada, e dando espaço para uma postura estatal mais indutiva, a defesa de flexibilização da lei do teto de gastos e de redução da taxa de juros mesmo entre figuras identificadas com o neoliberalismo, como Rodrigo Maia e André Lara Rezende. Isso abre espaço para o desenvolvimento de uma perspectiva neoliberal moderada no interior do bloco no poder, desde que não se revertam a reforma trabalhista, a lei de terceirização e seja aprovada alguma reforma da previdência. Nas atuais circunstâncias um governo sob cesarismo militar ou baseado num grande pacto político entre os partidos e forças da ordem está mais apto a seguir este caminho do que um governo sob o cesarismo bolsonarista.

9. Em segundo lugar, é preciso considerar que a vitória da perspectiva cesarista de Bolsonaro depende da aceitação pelo bloco no poder e pelos militares de uma escalada autoritária que desemboque no fascismo, com todas as consequências em termos de sujeição dos interesses do grande capital externo e interno à pauta ético-cultural bolsonarista e ao desmonte de estruturas e instituições cruciais para a própria reprodução da dominação burguesa na atual configuração da sociedade brasileira; da sujeição do Alto Comando das Forças Armadas (no governo e nos quartéis) à sua instrumentalização pelo fascismo, à pulverização do direito à violência legítima, com graves consequências para a hierarquia militar e à pauta bolsonarista no plano externo. As críticas de setores da mídia ao presidente e à ala bolsonarista do governo por sua pauta ético-cultural e suas trapalhadas políticas; a interlocução de setores industriais com os militares; a reação do “partido militar” ao bolsonarismo, e a postura crítica das diversas frações burguesas diante da pequena capacidade do governo em debelar a crise, o seu ceticismo e impaciência diante da imobilidade do governo na pauta econômica e a retração dos investimentos, indicam que nas atuais circunstâncias o cesarismo bolsonarista tende a enfrentar resistências ainda mais importantes com vista a sua afirmação política.

10. Em terceiro lugar, a vitória do cesarismo bolsonarista depende da incapacidade dos militares em viabilizar seu próprio cesarismo, com ou sem Bolsonaro na presidência. As escaramuças recentes entre o bolsonarismo e o “partido militar” e o distanciamento tomado pelos militares em relação ao presidente em questões importantes indicam que o apoio à Bolsonaro já não é mais incondicional, podendo desencadear uma operação de impeachment ou de renúncia. Diante do cenário de agravamento da crise, o cesarismo militar se coloca como opção preferencial para o bloco no poder, abrindo caminho para a adesão das forças de centro-direita, de instituições como STF e MP, do “partido do Judiciário”, da grande mídia, etc., em torno de um pacto político baseado na retomada do crescimento econômico, na adoção de uma postura externa mais soberana em termos diplomáticos e comerciais e na restrição ou mesmo eliminação do espaço político da esquerda; porém, com a manutenção da rotina eleitoral e de uma democracia mais restrita do que hoje. Num primeiro momento é possível que ocorra até mesmo a adesão de setores de centro-esquerda (PDT, PSB, REDE, setores do PT), desde que as restrições políticas se restrinjam à esquerda socialista (PSOL, PSTU, PCB, PCR), sindicatos e movimentos populares e que a pauta neoliberal extremada dê lugar a uma perspectiva neoliberal moderada. A grande dificuldade para a viabilização desta alternativa reside, em primeiro lugar, na resistência do mundo do trabalho e da oposição de esquerda, e em segundo lugar, na própria unidade dos militares em torno desta empreitada, por si mesmo arriscada por conta da capacidade restrita dos militares de consolidá-la no médio e no longo prazo. Como afirmamos anteriormente, o cesarismo militar faz a dominação burguesa retroceder a formas de autocracia relativamente superadas pelo próprio desenvolvimento capitalista no país, podendo abrir caminho para uma crise pré-revolucionária em caso de insucesso.

11. Em quarto lugar, a vitória do cesarismo bolsonarista depende da incapacidade das forças políticas de centro (centro-direita e centro-esquerda), das instituições e poderes que perdem força com a escalada fascista (STF, Congresso, MP, Alto Comando das Forças Armadas, partidos, governos estaduais) e das frações internas do bloco no poder que também saem perdendo com determinados componentes do programa econômico de Paulo Guedes (reprimarização econômica ainda maior, regressão neocolonial e privatização indiscriminada de bens públicos e recursos naturais estratégicos) em viabilizar um grande pacto nacional em torno da democracia liberal representativa, da estabilidade política, da soberania nacional e do crescimento econômico. A resistência dos partidos de direita ao projeto original da reforma da previdência; a luta desesperada do presidente da Câmara para manter sua autonomia institucional e capacidade de barganha política, as derrotas impostas ao governo em diversas medidas aprovadas no Congresso, as escaramuças com a LavaJato, a resistência do PT, do PDT e da REDE em acomodar-se com o governo e a iniciativa de parlamentares petistas em conversar com militares, além de pronunciamentos de determinadas lideranças deste campo, como FHC e Lula, são sinais de que diversos setores vislumbram esta alternativa. No entanto, a crise do sistema de representação política e o fato de que Lula é a única liderança do centro político capaz de costurar um grande pacto nacional, tornam essa possibilidade hoje remota, pois o ex-presidente sofre o veto dos militares, de forças de centro-direita e de setores do bloco no poder.

12. Finalmente, a variável mais importante para a vitória do cesarismo bolsonarista e também do cesarismo militar é a maior ou menor capacidade da oposição de esquerda em barrar ambas as tendências cesaristas, derrotar o governo Bolsonaro e seu projeto neoliberal extremado. A constituição de uma Frente Ampla antineoliberal, antifascista e em defesa das liberdades democráticas contra o governo, as tendências cesaristas e a pauta do golpe, reunindo partidos de centro-esquerda e da esquerda socialista, movimentos populares, sindicatos, entidades culturais, além de artistas, intelectuais e democratas em geral é hoje uma necessidade histórica diante do caráter regressivo, antinacional, antidemocrático e, por tudo isto, antipopular das forças golpistas que dominam a política brasileira desde 2016 e, em especial, do governo Bolsonaro. Mais do que nunca a constituição desta frente é necessária, com a formação em seu interior de uma Frente de Esquerda para fazê-la avançar para além do horizonte burguês, sob o risco de instalação do fascismo e de viabilização de um processo de regressão histórica nunca antes visto no país. No entanto, a constituição desta frente convive com algumas dificuldades. Em primeiro lugar, a inegável hegemonia petista no interior da oposição de esquerda fortalece a crença no salvacionismo lulista e a perspectiva da conciliação de classes, o que faz as principais organizações do mundo do trabalho girar seus esforços de mobilização e organização em torno da bandeira “Lula Livre”. Enquanto isso, o programa lulista de retomada do indutivismo estatal em favor do crescimento econômico, da geração de emprego e do aumento do mercado consumidor com a reversão de algumas reformas neoliberais, sustenta a crença na possibilidade de poder operar num ambiente de conciliação de classes, contando com o apoio de setores do bloco no poder, de partidos de centro-direita e de instituições que atuaram decididamente para viabilizar o Golpe de Estado de 2016. Em segundo lugar, o movimento sindical demonstra grande dificuldade para reagir aos ataques à sua viabilidade financeira e à própria sobrevivência impostos pela reforma trabalhista e pelo governo Bolsonaro e para redimensionar sua inserção social diante do processo de “uberização” da força de trabalho. Não à toa os sindicatos tem demonstrado dificuldade de mobilização em torno de pautas propriamente corporativas, como demonstrado na luta contra a reforma da previdência e no recente 1º de Maio. Em terceiro lugar, apesar da resistência a uma postura de acomodação diante do governo por parte da oposição de esquerda, a sua atuação permanece fortemente calcada na oposição institucional, movimentando-se em função de seus cálculos eleitorais, como se as eleições de 2020 e 2022 estivessem garantidas e/ou que pudessem ser decisivas na contenção do processo de regressão política que se seguiu ao Golpe de Estado. Em quarto lugar, porque nesta conjuntura defensiva a disputa por espaço entre as diversas organizações de esquerda, não raramente orientada por formas típicas da pequena política, a exemplo do uso oportunista das lutas contra as opressões como instrumento voltado para desqualificar e queimar organizações políticas e militantes, na lógica “dos fins justificando os meios”, tem dificultado ações unitárias e a perspectiva de constituição da própria Frente de Esquerda. Por fim, a pauta da oposição de esquerda ainda opera no plano meramente defensivo, na medida em que a resistência à retirada de direitos tem dialogado muito pouco com setores do proletariado submetidos à lógica da precarização e para quem os direitos trabalhistas e previdenciários não compõem seu horizonte de expectativas, pois estão deles excluídos há bastante tempo. Uma pauta ofensiva, que demande a ampliação de direitos sociais, trabalhistas e democráticos para todos os trabalhadores, não apenas a manutenção dos atuais direitos, poderia dialogar de maneira mais eficaz com esses segmentos do mundo do trabalho. Além disso, é preciso denunciar com clareza como o discurso antiestatista e austericida, que fundamenta a retirada de direitos dos trabalhadores e os cortes de gastos sociais, esconde o fato de que com o neoliberalismo aumentam as transferências de recursos públicos para o capital privado, tanto por meio da desvinculação de receitas para o pagamento da dívida pública quanto pelas formas diretas e indiretas de privatização, pela renúncia fiscal, pelos subsídios, etc., o que coloca de maneira urgente a necessidade do controle democrático e popular sobre o Estado e a gestão dos recursos públicos; ou seja, a necessidade urgente do Poder Popular. Porém, apesar destas dificuldades, além das duas forças cesaristas (bolsonarismo e militares), no atual cenário apenas a oposição de esquerda detém capacidade de conquista da iniciativa política para superar a crise. Isto indica que o embate decisivo no atual momento da luta de classes é entre as forças cesaristas, que representam os interesses comuns do bloco no poder, e a oposição de esquerda, que representa os interesses do mundo do trabalho.

13. Esta polarização ficou evidente nos últimos dias e tende a se acirrar pelas próximas semanas. O anúncio de cortes radicais no orçamento da educação pelo governo Bolsonaro, gerou uma reação em cadeia nas universidades, institutos federais e escolas públicas mobilizando não apenas professores, estudantes e funcionários, mas um amplo conjunto de segmentos e grupos sociais. Assembleias, atos políticos, aulas públicas foram se sucedendo, comissões de mobilização foram se formando e a batalha pela informação se ampliando num crescendo que culminou na Greve Nacional da Educação do dia 15 de maio (15M), mobilizando milhões de pessoas contra o governo pelo país afora, em mais de duzentas cidades, em atos convocados por sindicatos, movimentos populares, organizações políticas e entidades, ou seja, pela oposição de esquerda. Tendo por eixo a defesa da educação pública, o 15M contou particularmente com a adesão dos estratos proletários, bem como da classe média, setores sociais para quem o acesso à educação pública não é apenas o caminho para a ascensão social, mas também para a qualificação profissional, a produção e a apreensão do conhecimento. Por conta disto, atraiu a adesão de variados setores políticos, desde a oposição de esquerda, passando por movimentos de luta contra as opressões, autonomistas, anarquistas, chegando até eleitores desiludidos com Bolsonaro, passando por aqueles identificados com o antipetismo, a direita tradicional, mas também para quem a perspectiva bolsonarista representa o obscurantismo e o desmonte da escola pública. Até mesmo a grande mídia não-bolsonarista, que defende a educação pública desde que entregue à gestão e aos negócios privados de empresas educacionais e entidades “filantrópicas” como “Todos pela Educação”, “Instituto Ayrton Senna”, etc., adotou uma postura favorável, fustigando o presidente e a ala bolsonarista do governo, enquanto os partidos do “Centrão” buscaram capitalizar o apoio popular convocando o ministro da Educação para dar “explicações” no Congresso. O sucesso dos atos do 15M, mobilizando multidões como não se via desde 2013, se deveu ao fato de que a defesa da escola pública adquiriu uma perspectiva contra hegemônica não vista nas pautas que mobilizaram a esquerda nos últimos anos, como a luta contra o golpe, a luta contra a lei do teto de gastos, a luta contra a reforma trabalhista e contra a reforma da previdência, permitindo à oposição de esquerda dialogar com novos setores sociais e isolando o governo e em particular o presidente e o bolsonarismo mais ainda.

14. O presidente colocou em movimento uma cartada para viabilizar o cesarismo bolsonarista, tentando mobilizar sua base e criando as condições para um autogolpe. Em primeiro lugar, desqualificou explicitamente as manifestações do 15M e a oposição de esquerda, mantendo sua postura original e recusando-se a negociar qualquer concessão ou abrandamento dos cortes; depois sugeriu indiretamente a necessidade de fechamento do regime político e de concentração de poder em suas mãos para executar seu programa de governo ao se declarar incapaz de governar num regime minimamente democrático e ter que fazer “conchavos” com corporações e forças políticas encasteladas nas instituições; por fim, convocou sua base para uma grande manifestação de apoio no dia 26 de maio, como a antítese do 15M. Diante disto, podemos afirmar que o Bolsonaro pretende mobilizar o bolsonarismo no mesmo terreno em que a oposição de esquerda se movimenta, colocando-se como sua antítese e tentando derrotá-la, imaginando se qualificar diante do bloco no poder e do campo golpista como única força capaz de superar a crise e consumar o Golpe de Estado de 2016. 

15. Apesar de todo o isolamento político a que Bolsonaro está relegado hoje, com as vozes pelo impeachment se fazendo ouvir com maior intensidade e desenvoltura nos salões da burguesia, no Congresso Nacional e nas redações da grande mídia, a derrota da perspectiva cesarista bolsonarista – e a cesarista militar – depende fundamentalmente da capacidade da oposição de esquerda e dos trabalhadores manterem as ruas ocupadas, promovendo nova manifestação ainda de maior vulto no dia 30 de maio contra o autogolpe e em defesa dos direitos sociais e das liberdades democráticas e dando sequência a um calendário de mobilizações com vistas à greve geral de 14 de junho. A esquerda socialista, por sua vez, tem que atuar no âmbito da oposição de esquerda e da frente ampla no sentido de descortinar as disputas inter-burguesas e identificá-las como caminhos possíveis de implementação do projeto do Golpe de Estado de 2016 e de alinhamento ao capital internacional; de integrar o trabalho de base nos locais de trabalho, estudo e moradia com as lutas de massas nas ruas; de empenhar para que a diversidade social e política representada nos movimentos de massas seja preservada, mas articulada com uma intervenção política e organizativa coerente com um processo de politização propriamente classista desses mesmos movimentos; da superação política e cultural do Lulismo e da política de conciliação de classes em favor de uma política e cultura classista, e de defesa dos direitos sociais e trabalhistas e das liberdades democráticas articulado a um programa antiimperialista, e anticapitalista, calcado no Poder Popular.

ESCOLA DE FORMAÇÃO SOCIALISTA