Notas Sobre o Conflito na Ucrânia - “As noites estão grávidas e ninguém sabe quando nascerá!”

1. Considerações iniciais


 - Na condição de acadêmicos do Curso de Licenciatura em História é fundamental buscar compreender o movimento de totalidade dialética que envolve os fenômenos investigados, posto que acontecimentos, fatos e processos estão submetidos a múltiplas e diversas determinações sociais, políticas, econômicas e culturais - isto é, compreender a realidade como totalidade concreta, fundamentada em contradições fundamentais a partir das quais se organizam as relações sociais de cada sociedade, onde tudo está em conexão com tudo, culminando em mudanças – que se reproduzem sobre dadas estruturas – e em transformações histórico-sociais – que rompem com estruturas vigentes, edificando outras;

- Também é fundamental que o esforço por compreender o movimento de totalidade dialética que envolve os fenômenos investigados procure correlacionar não apenas as determinações que se expressam nas interdependências entre os níveis sociais, políticos, econômicos e culturais, mas também como essas determinações se expressam em termos de longa, média e curta duração. Explorar interfaces entre diferentes temporalidades históricas nos permite identificar, por exemplo, como características e dinâmicas herdadas se apresentam internalizadas em acontecimentos, fatos e processos em curso num determinado contexto do tempo presente, mas também, ao serem relidos e interpretados mediante as referidas durações, nos permitem a apreensão crítica acerca das narrativas, discursos e informações em circulação, de modo a viabilizar a distinção entre ‘aparência’ e ‘essência’ e a condução da crítica das ‘idéias fora de lugar’;


- Por fim, considerando o lugar/papel do historiador em face da realidade que nos envolve diretamente no tempo presente, ainda é importante reconhecer a pertinência de relativo “distanciamento” e de pouco “envolvimento afetivo” com o acontecimento, fato ou processo investigado. Obviamente, não se trata de neutralidade científica, mas do exercício da objetividade científica requerida pelo ofício do historiador, lançando mão da construção de “filtros” que concorram para a apreensão do objeto investigado como totalidade concreta na sua historicidade. Todavia, é a partir do método e da técnica de lidar com a dinâmica temporal que permite a identificação da contribuição específica do historiador em face dos demais pesquisadores situados nos demais campos das ciências humanas, mas, sobretudo a demarcação crítica quanto a “narrativas” que “concorrem” com a História, fortemente presentes nas mídias monopolistas e nas plataformas e redes digitais de comunicação;


- Na perspectiva aqui apresentada, o exercício rigoroso do ofício do historiador não condiz com o seu insulamento em face dos acontecimentos, fatos e processos que precipitam no tempo presente. Para além de buscar compreender a historicidade contida nas relações e fatos sociais, é fundamental que se manifeste como “partido” crítico das configurações hegemônicas vigentes, ancoradas sobre formas de desigualdade e dominação social. 


2. Precedentes históricos:


2.1. De longa duração


A longa duração histórica aqui retratada compreende o período de transição do mundo medieval-feudal para o mundo contemporâneo-capitalista, do século XV ao século XX. Portanto, corresponde à afirmação progressiva, entre outras, das relações de produção capitalistas, da consolidação da contradição de classe fundamental presente nessas relações, da afirmação dos Estados nacionais (no nascedouro, tardios e hipertardios em relação às referidas relações de produção) e sistema (hierárquico) de Estados, do capital monopolista-financeiro e imperialismo (político, econômico e cultural), bem como da crítica da economia política às referidas relações de produção.


2.1.1. Atual Rússia:


Consolidou historicamente, do século XV ao início do século XVIII, ao longo de invasões sofridas e guerras conduzidas contra povos tártaro-mongóis, cavaleiros teutônicos católicos, tropas polonesas católicas, tropas suecas luteranas, mas já demonstrando grande capacidade de resistência em face da ocupação da Rússia pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte no início do século XIX. A Rússia foi se constituindo em um gigantesco Estado Imperial, multiétnico, feudal e autocrático entre os séculos XV e início do século XX;


Aspecto importante presente na constituição do Estado Imperial da Rússia, no século XIX e início do século XX, foi a formação do nacionalismo grão-russo que, partindo de uma suposta identidade política, religiosa, cultural e, em alguns círculos, genética do povo russo, teriam o direito e dever de assumir a condição de um Império que defendesse sua integridade territorial, política e cultural, que reunisse povos russos e não russos russificados, bem como que liderasse os povos eslavos em geral frente às ameaças vindas do “Ocidente” – o que os europeus hegemônicos compreendem por “Ocidente” ou “Ocidente Unido” efetivamente inclui a Europa anglo-saxã, francófila e germânica, Estados Unidos e Canadá;

A modernização e industrialização foram efetivadas com grandes sacrifícios sociais, desenvolvendo estruturas e tecnologias militares defensivas modernas desde o advento da Revolução Russa de Outubro de 1917 e a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1922, sob contexto da Primeira Guerra Mundial, da Guerra Civil (1918-1922), da guerra contra a ocupação estrangeira (1918-1922) – nações que eram aliadas da Rússia na Primeira Guerra Mundial  intervieram a favor do Exército Branco (czaristas e liberais), com tropas britânicas, neerlandesas, norte-americanas e japonesas desembarcando tanto nas regiões ocidentais (Criméia e Geórgia) como nas orientais (ocupação de Vladivostok e da Sibéria Oriental), tendo como objetivos declarados os de derrubar o governo bolchevique (que era compelido a assinar o acordo de paz nas condições impostas pelo Império Alemão) e instaurar um regime favorável à permanência da Rússia na guerra, e objetivos não declarados de destruir a Revolução Russa ou submetê-la a um “cordão sanitário” que bloqueasse a influência dos ideais soviéticos junto a Europa Ocidental –, da invasão da Alemã Nazista (1941-1945) e da Guerra Fria (1947-1991);


Conviveu com o processo de reiteração da estrutura autocrática de Estado desde a concentração do poder nas mãos de Stalin (1929-1953).

 

2.1.2. Atual Ucrânia:


Teve origem, em seus primórdios mais remotos, nas regiões à oeste da atual Ucrânia, quando veio a compor a chamada “Rússia de Kiev”, formada em torno da cidade de Kiev, entre os séculos X e XIII, vindo a ser destruída pelas invasões mongóis;


Nos séculos seguintes, regiões que atualmente formam a Ucrânia vieram a integrar subordinadamente diversas unidades políticas como o Reino Polaco-Lituano e os impérios Austro-Húngaro, Czarista e Otomano. Todavia, a partir do final do século XVIII essas regiões foram progressivamente integradas ao Império da Rússia Czarista como uma de suas múltiplas províncias;  


Sob o princípio da autodeterminação dos povos defendido pelos bolcheviques, recompõe-se como República Socialista Soviética da Ucrânia mediante projeto idealizado por Lênin, no âmbito da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mas terá fortemente reduzida a sua autonomia com a política de coletivização forçada dos campos a partir de 1928, inclusive com violenta repressão aos camponeses ricos (kulacs);


Aspecto importante presente na constituição do Estado da Ucrânia é o surgimento de um nacionalismo político ucraniano étnico tardio configurado em Estado, quando o consideramos, em termos históricos, em comparação aos nacionalismos da Rússia e de diversos países europeus, com forte presença de elementos de ressentimento nacional em relação aos poloneses e russos do país e à Rússia. Embora haja referências quanto às origens do nacionalismo ucraniano étnico à influência cultural e levantes promovidos por cossacos em relação ao Reino Polaco-Lituano, na passagem do século XVI ao XVII, e em relação ao controle efetivo que o Império Russo exerceu sobre os ucranianos, a partir do final do século XVIII, foi efetivamente com a crise do Império da Rússia Czarista, durante a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Bolchevique e a Guerra Civil subsequênte que esse nacionalismo se apresentou de forma efetiva em termos políticos. Todavia, o seu florescimento político não resistiu às intervenções político-militares dos Exércitos Branco e Vermelho (1918-1922), dos exércitos alemães (1918) e dos destacamentos anarquistas (1917-1921). Esse nacionalismo, expresso em movimentos como a Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) e o Exército Insurgente Ucraniano (UPA), assumiu características supremacistas étnicas, inclusive promovendo faxina étnica contra aldeias polonesas e de outras minorias étnicas da Ucrânia, com centenas de milhares de vítimas, nos anos 1930 e durante a Segunda Guerra Mundial. Com o término da Segunda Guerra Mundial, e a consolidação da URSS, esse nacionalismo étnico ucraniano foi fortemente reprimido, em certa medida modificado em seus fundamentos e direcionado aos interesses soviéticos. Todavia, organizações e militantes extremistas do nacionalismo ucraniano não desapareceram, sendo mobilizados pela CIA contra a URSS durante a chamada “Guerra Fria” e contra a Rússia após o fim da URSS.


2.1.3. Atuais União Europeia e Estados Unidos:


União Europeia e Estados Unidos tem seus primórdios na longa transição do mundo medieval-feudal para o mundo moderno-burguês, transcorrido entre os séculos XV e XIX, culminando na afirmação do capitalismo industrial e na ordem burguesa ao final desse período. Também teve curso, do final do século XVIII ao término da Primeira Guerra Mundial, um longo processo histórico de conformação da república liberal representativa ocidental, com a pretensão, ao lado da instituição do capitalismo, de ser a forma universal e definitiva de organização e exercício do poder político, com características como divisão de poderes, sistema partidário (amplo ou restrito) sólido, eleições periódicas para renovação da representação no Executivo e no Legislativo, magistratura (Judiciário) e tecnoburocracia civil e militar em geral formada mediante concurso e mérito, bem como organizações da sociedade civil (sistema de mídia, ONGs, think thanks, etc.) demarcadas da sociedade política (Estado), supostamente controlando esta última;


A afirmação desse capitalismo, a partir do advento do capital monopolista e financeiro, desde o final do século XIX, substrato basilar do imperialismo (político, econômico e cultural) capitalista contemporâneo, foi marcado pela expansão imperialista sobre a África, Ásia, Oceania e América Latina e por duas Grandes Guerras Mundiais envolvendo diversos países europeus, os Estados Unidos e o Japão, dentre outros países e regiões, pelo controle desses continentes e subcontinentes convertidos em mercados vitais;


Ao término da Segunda Guerra Mundial, sob hegemonia dos Estados Unidos, foi construída a centralização dos países imperialistas em apenas um único eixo imperialista convergente-divergente: o Imperialismo Euro-Americano. Trata-se, na abordagem aqui apresentada, de um centro imperialista hegemônico representado pelos Estados Unidos, que reúne, subordina e disputa política, econômica e culturalmente com os demais países imperialistas ocidentais de segunda grandeza – Inglaterra, Alemanha, França, Canadá e Japão. Portanto, um eixo imperialista armado para conduzir domínio e guerras contra as denominadas repúblicas socialistas (URSS, China, Cuba, etc,) e países capitalistas periféricos não subordinados, sob liderança político-diplomático-militar e econômica norte-americana. No âmbito da Europa, Estados Unidos e Canadá, assumiu destaque a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), formal e supostamente uma organização internacional de defesa coletiva contra a URSS. Com o fim a URSS, teve a sua maior expansão rumo ao cerco da Rússia, bem como a sua ‘real’ configuração como organização internacional de ataque do chamado “Ocidente”. Na Ásia, envolvendo Austrália, França, Nova Zelândia, Paquistão, Filipinas, Tailândia, Grã-Bretanha e Estados Unidos, foi criada a Organização do Tratado do Sudeste Asiático (SEATO) também formal e supostamente uma organização internacional de defesa coletiva contra a expansão comunista no Sudeste Asiático, assinado em 8 de setembro de 1954. A SEATO veio a ser dissolvida em 30 de junho de 1977.


2.2. De média duração


A média duração histórica aqui retratada compreende o período de 1988/1991, contexto de queda das experiências “soviéticas” do chamado Leste Europeu e da derrocada e extinção da URSS, ao biênio de 2019/2020, às portas de uma nova conjuntura de acirramento da crise internacional do capitalismo, já presente no segundo semestre de 2019, mas intensificada sobremaneira com a Pandemia da Covid-19, eclodida no final deste mesmo ano e consolidada em 2020. Deve-se ter claro que a crise aqui referida, que diz respeito às relações de produção capitalistas, com consequente manifestação social, política, econômica e cultural, tem suas origens na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, cujas raízes residem na incontornável tendência de queda das taxas médias de acumulação do capital e de multiplicação do capital puramente financeiro em relação ao capital produtivo. Crise esta que é estrutural e de longa duração, mas que pode conviver com crises periódicas de acirramento, à exemplo da chamada “crise do sub-prime” de 2008, a que ainda estamos expostos, bem como períodos de crescimento da atividade econômica e dos níveis de emprego e consumo, a exemplo do “boom das commodities”, ocorrido entre 2003 e 2008. No âmbito desse período de média duração, sob a referida crise estrutural e de longa duração, e como reação a ela, o Imperialismo Euro-Americano, sob a liderança hegemônica unilateralista norte-americana, impôs a consolidação das reformas neoliberais – com abertura dos mercados dos países capitalistas periféricos aos capitais euro-americanos e japoneses, privatização do setor público, desregulamentação das economias, contrarreformas sociais e trabalhistas, imposição da sociabilidade neoliberal-empreendedorista-ultraindividualista, mundialização de padrões educacionais e culturais, e reconfiguração neoliberal da própria ossatura institucional dos Estados liberais periféricos –, implementou guerras com vista a consolidar sua posição política, econômica e militar em regiões estratégicas para a produção e escoamento de petróleo e gás (Oriente Médio, Norte da África), ampliou extraordinariamente gastos militares nos orçamentos públicos, bem como assediou política e economicamente Estados da extinta URSS para integrar à União Europeia e OTAN, isolou ou submeteu a severas sanções econômicas Estados que resistiram a esse imperialismo (Cuba, Venezuela, Rússia, Irã), atacou militarmente Estados resistentes à imposição da sua hegemonia na Europa (Yugoslávia e Sérvia e Montenegro) ou que possuíssem recursos energéticos estratégicos (Iraque, Líbia, Síria) e desestabilizou regimes e governos mediante condução de “guerras híbridas” (Geórgia, Ucrânia, Brasil), financiando, apoiando e instrumentalizando fundamentalismos religiosos e movimentos de extrema direita. Também como reação à referida crise, o Imperialismo Euro-Americano, de forma aparentemente contraditória, promoveu uma profunda articulação com o chamado “socialismo de mercado chinês”, deslocando capitais, empresas e tecnologias para a China, concorrendo para consolidar o maior parque produtivo industrial do planeta naquele país, gerando mercadorias baratas demandadas pelos mercados globais, distribuídas e comercializadas por uma rede comercial oligopolista – Walmart, Carrefour –, mas em contrapartida desencadeando desindustrialização generalizada de países e continente e especialização produtiva dos mesmos em produção de commodities primárias (minerais e agropecuárias), passando para a condição de demandantes de produtos industrializados chineses – redundando no projeto econômico estratégico chinês denominado “Nova Rota da Seda” em 2013, que pretende integrar 65 países e reunir 63% da população global, concentrado primordialmente na Eurásia (o contínuo territorial formado pela Europa e Ásia), centralizando, aprofundando e ampliando a divisão internacional do trabalho descrita –, com profundo esgarçamento das relações sociais dos países liberais periféricos – desemprego/subemprego, generalização de pobreza/extrema pobreza, frustração e ressentimento social, avanço da criminalidade, prostituição e dependência química, etc. O desdobramento da crise de acumulação nos terrenos econômico e político tendeu a se aprofundar em face, de um lado, da relativa reorganização político-econômica e disposição de resistência da Rússia à perda de território/população, pressão econômica e cerco militar, amparada por sua estrutura bélica moderna, e do crescimento econômico vertiginoso da china e importante avanço da capacidade de defesa militar, apoiada num grande potencial de integração econômica de países liberais periféricos especializados na produção de commodities primárias, com ambos os países conduzindo um movimento de resistência e de acomodação com o Imperialismo Euro-Americano, com vista a uma desejada reformulação geopolítica internacional que culminasse em três centros mundiais e diversos centros regionais de poder; e, de outro, a disputa pelo controle das reservas de energia primária, dentre as quais o petróleo passou a representar 34%, o carvão 27% e, em expansão estratégica, o gás com 24%, com peso para interferir fortemente nos custos de produção e nos níveis de atividade econômica e emprego – com a Rússia detendo as maiores reservas de energia primária do planeta, a União Europeia como a mais carente dessa energia, a China como demandante importante para completar suas necessidades e os Estados Unidos também como quem detém importantes reservas mas com elevado custo de produção e transporte. Portanto, a crise de acumulação nos terrenos econômico e político, que se manifesta como suas contrafaces a corrida militar, a reformulação geopolítica internacional, os conflitos étnicos históricos, a transição de matriz e disputa de reservas energéticas primárias, tende a se prolongar para conflitos militares de grandes proporções, com desdobramentos globais em face da interdependência e complementariedade entre as economias, sobretudo quando envolvem grandes players internacionais – Estados Unidos, China, Rússia, Japão, Alemanha, França e Inglaterra. Assim, tais processos co-determinaram pelo menos quatro pontos de tensão patrocinados pelo Imperialismo Euro-Americano, sobretudo a partir dos anos 2010: i. Na Europa e nos Estados Unidos, retomada do processo de desenvolvimento da russofobia ocidental, presente desde a URSS, mas que escalou recentemente com a integração da Criméia à Federação Russa em 2014 e a acusação de setores do Partido Democrática dos Estados Unidos, de instituições de Estado e do sistema de mídia da suposta interferência da Rússia nas eleições norte-americanas de 2016 em favor de Trump – o chamado “Rússia Gate” –; ii. No Oriente Médio, ofensiva do Imperialismo Euro-Americano desde o apoio armado à oposição “moderada” na Síria em 2011 – que na verdade era o Estado Islâmico – e a saída dos Estados Unidos em 2018 do Plano de Ação Conjunto e Abrangente assinado em 2015, que estabelecia um acordo entre Irã e os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha e a União Europeia, em torno do Programa Nuclear Iraniano; iii. No Leste e Sudeste Asiático, implementação de sanções contra a China, intensificação de operações militares no Sul da China e apoio político e militar à Taiwan; iv. Na América Latina, condução de um conjunto de guerras híbridas para derrubar governos progressistas e acirrar processos de desestabilização política e social na Venezuela e em Cuba.


2.2.1. Desenvolvimento político da Rússia entre 1991 e 2019/2020


2.2.1.1. De 1991 a 1999: Boris Ieltsin (Putin Primeiro Ministro 1999/2000)


Consolidação de uma ‘nova’ burguesia – que muitos especificam denominando-a ‘oligarquia’ econômica – a partir das chamadas “glasnost” e “perestroika”, inclusive com personagens vinculadas a organizações criminosas;

Desmantelamento da URSS e generalização de corrupção e de saque do Estado;

Reestruturação e reorganização neoliberal do Estado, com profunda abertura comercial e desregulamentação da economia, sob forte influência do Imperialismo Euro-Americano;

Privatização de empresas estatais em favor de burgueses que vinham se formando como uma “nova” classe desde os anos 1950 e por tecnocratas do Estado soviético em desagregação;

Desarticulação e desagregação dos serviços públicos, com destaque aos de saúde, educação e previdência social; e queda brutal dos níveis de vida e emprego da população;

Reorganização do Partido Comunista em 1993, agora denominado Partido Comunista da Federação Russa (PCFR), que liderou mobilizações sociais, frentes políticas nacionalistas e se transformou numa grande força político-eleitoral, alcançando 32% nas eleições de 1996, que se desenvolveram sob intensa fraude eleitoral;

Espectro político:

- Coalizão política entre: capitalistas neoliberais e capitalistas adeptos de um capitalismo nacional, camadas médias em formação e amplos setores da tecnocracia do Estado;

- Coalizão entre ultranacionalistas e fascistas;

- Partido Comunista da Federação Russa se recompondo progressivamente, formando uma frente nacionalista;


Acontecimentos importantes:


- Condução da chamada Guerra do Golfo em 1990/1991, com os Estados Unidos liderando uma coalizão internacional, liderada pelos Estados Unidos e patrocinada pela Organização das Nações Unidas (ONU), com a aprovação de seu Conselho de Segurança, contra as forças armadas iraquianas sob as ordens de Saddam Hussein;

- Intervenção da OTAN na Bósnia e Herzegovina com operações aéreas de grande escala e presença de aproximadamente 60.000 tropas em Estados recém formados a partir da desagregação da Yugoslávia, entre 1992 e 1995;

- Teve curso a Primeira Guerra da Chechênia (1994-1996), que demonstrou o estado de fragilidade militar da Rússia;

- Os ataques conjuntos da Marinha e da Força Aérea dos Estados Unidos ao Iraque por meio de mísseis de cruzeiro em 1996, em resposta a uma ofensiva iraquiana na Guerra Civil Curda; 

- Intervenção militar da OTAN na Iugoslávia, com operações aéreas de grande escala, lançando bombas radioativas, em 1999 – intervenção conduzida à revelia do Conselho de Segurança da ONU e com a Anistia Internacional acusando a OTAN de promover ataques deliberados contra alvos civis; 

- OTAN incorporou a República Checa, a Polônia e a Hungria em 1999; 


2.2.1.2. De 1999 a 2008: Vladimir Putin


Construção de um projeto capitalista nacional de caráter neoprussiano: Estado forte – mediante agências de planejamento, regulamentação e fomento –; acumulação capitalista fortemente marcada por uma estrutura produtiva e industrial vinculada à exportação de commodities minerais – com destaque para gás e petróleo – e agropecuárias e de equipamentos e armamentos militar, com importância relativa para setores voltados prioritariamente para o mercado interno;

Reação ao quadro institucional vigente mediante recuperação e reorganização do Estado, e seu posicionamento como organizador e regulador da economia:

- Organização de um sistema tributário sólido;

- Bancos estatais fortalecidos;

- Recuperação do sistema previdenciário;

- Redução das privatizações e reestatização de algumas empresas estratégicas, a exemplo de empresas do setor de petróleo;

- Estatização de empresas estratégicas vinculadas aos hidrocarbonetos e participação do Estado nas empresas de tecnologia, de armamento, aeroespacial, etc.;

Recuperação e reorganização das forças armadas;

Prendeu e/ou exilou capitalistas neoliberais que estiveram em torno de Boris Yeltin, sobretudo aqueles que não se submeteram ao “novo” projeto capitalista para a Rússia, ou ainda que estivessem envolvidos em organizações criminosas – a exemplo de alguns milionários russos envolvidos com o tráfico de drogas, com muitos deles atualmente radicados na Europa e nos Estados Unidos;

Demarcação do espaço político e geoeconômico de atuação entre: a) Estados Unidos/Europa e capitais norte-americano, europeus e japoneses – tendo como limite os Estados da antiga URSS à oeste da Rússia, mas excluindo Ucrânia, Geórgia e Bielorússia – e; b) Estado e capitais russos – envolvendo o próprio território russo, à oeste as repúblicas da Ucrânia, Geórgia e Bielorússia, as repúblicas aliadas da Ásia Central (Cazaquistão, Tajquistão e Quirquistão) e a Armênia;


Espectro político:


- Coalizão entre capitalistas, segmentos de camadas médias e amplos setores da tecnocracia do Estado adeptos de um capitalismo nacional, em crescimento em termos de influência, diretamente expressa e capitaneada por Putin;

- Coalizão entre capitalistas neoliberais, parte das camadas médias e pequenos setores da tecnocracia do Estado, em declínio em termos de influência. Todavia, os capitalistas neoliberais mantêm influência relativa no Estado, expressa na figura de Dmitry Medvedev;

- Coalizão entre ultranacionalistas e fascistas, em declínio em termos de influência;

- Partido Comunista da Federação Russa, em declínio em termos de influência;


Acontecimentos importantes:


- Teve curso a Segunda Guerra da Chechênia (1999-2000), com afirmação militar do exército russo, com resistência dos fundamentalistas separatistas se restringindo a atos terroristas;

- OTAN bombardeou e ocupou o Afeganistão em 2001;

- Em 2002, o presidente americano George W. Bush informou oficialmente ao governo russo a saída dos EUA do Tratado de Mísseis Antibalísticos, que Washington havia assinado com a URSS em 1972;

- Desencadeamento do boom das commodities (2003-2008), o que contribuirá decisivamente com o processo de reorganização econômica neoprussiana e soerguimento da Rússia;

- OTAN incorpora a Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Romênia, Bulgária e Eslovênia em 2004;

- Criação dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em 2006;

- Na Conferência de Segurança de Munique de 2007, Putin advertiu que a expansão da OTAN estava inviabilizando a construção de uma arquitetura de segurança global e estimulando uma corrida armamentista na Europa;


2.2.1.3. De 2008 a 2012: Dmitry Medvedev (Vladimir Putin como Primeiro Ministro)


Avanço do processo de estruturação dos BRICS, mediante criação de instituições, de fundo soberano comum e de desenvolvimento de maiores interações e interdependências econômicas dos seus membros, sobretudo em torno da economia chinesa;

O enorme impacto que a chamada Crise Econômica do Sub-prime de 2008 exercerá nas economias dos Estados Unidos, União Europeia e Japão, sobretudo entre 2009 e 2012, terá efeitos moderados junto aos países integrantes do BRICS, pois a economia chinesa sustentou crescimento econômico, ainda que decrescente a partir de 2010, elevado nesse período, absorvendo commodities dos demais integrantes – o crescimento chinês foi de 8,7% em 2009, 10,4% em 2010, 9,3% em 2011 e 7,8% em 2012;

Aprofundamento da estrutura produtiva e industrial vinculada à exportação de commodities minerais e agropecuárias e de equipamentos e armamentos militares, em face das interações e interdependências com a Europa e a China;


Espectro político:


- Coalizão entre capitalistas adeptos de um capitalismo nacional, segmentos de camadas médias e amplos setores da tecnocracia do Estado, em crescimento em termos de influência;

- Coalizão entre capitalistas neoliberais, parte das camadas médias e pequenos setores da tecnocracia do Estado, em declínio em termos de influência;

- Coalizão entre ultranacionalistas e fascistas, em declínio em termos de influência;

- Partido Comunista da Federação Russa, em declínio relativo em termos de influência;

- Em que pese o avanço dos capitalistas e setores da tecnocracia adeptos de um capitalismo nacional neoprussiano e do relativo declínio dos capitalistas neoliberais, teve curso um arranjo político no qual Dmitry Medvedev assumiu a chefia do Estado e Vladimir Putin a chefia do governo;


Acontecimentos importantes:


- Eclodiu em 2008 a maior crise financeira internacional desde 1929/1930;

- OTAN abriu as portas para a entrada da Ucrânia e da Geórgia durante a sua reunião de cúpula de Bucareste em 2008, com oposição contundente da Rússia;

- Intervenção militar russa na Geórgia em 2008, com vista a proteger as autoproclamadas Repúblicas da Ossétia do Sul e da Abkhazia, bem como interditar a entrada da Geórgia na União Europeia e na OTAN;

- OTAN incorporou a Albânia e a Croácia em 2009;

- William Burns, ex-embaixador dos Estados Unidos na Rússia, em memorando de fevereiro de 2009, disse: “Nyet [não] significa nyet: linhas vermelhas da Rússia para a ampliação da OTAN”. [A Rússia vê] “a expansão para o leste como uma ameaça militar potencial”. (...) “a situação poderia dividir o país [Ucrânia] em dois, levando à violência ou mesmo, acreditam alguns, à guerra civil; o que forçaria a Rússia a tomar uma decisão sobre intervir”;

- OTAN, dentro da lógica do Imperialismo Euro-Americano de exercer controle direto e indireto sobre regiões e países produtores de petróleo, bombardeou posições governamentais na Líbia em 2011, conduzindo operações militares que extrapolavam o Conselho de Segurança da ONU, que efetivamente havia aprovado – com abstenção da Rússia e da China – apenas a constituição de uma zona de exclusão aérea. Essa ação, que era ilegal do pondo de vista do direito internacional, efetivamente redundaria na derrubada do regime, no bombardeamento do comboio de Muammar Al-Gaddafi e sua captura e morte por forças insurgentes e mercenárias, bem como na fragmentação do país entre dezenas de senhores de guerra que controlam a extração e comercialização do petróleo em consórcio com grandes petrolíferas norte-americanas e europeias;

- OTAN, com base na lógica supracitada, bombardeou a Síria de 2011, armou mercenários jihadistas para derrubar o regime político e controlou regiões de produção de petróleo, mas também preservando a extração e comercialização de petróleo por parte de empresas norte-americanas e europeias nas regiões ocupadas, numa clara demonstração de saque neocolonial imperialista;


2.2.1.4. De 2012 aos dias atuais: Vladimir Putin (Dmitry Medvedev como Primeiro Ministro entre 2012 e 2020)


Integração da Criméia por parte da Rússia – região historicamente pertencente à Rússia, transferida para a então chamada República Socialista Soviética da Ucrânia por Nikita Khrushchev, em 1954 – ocorreu em reação ao Golpe de Estado Euromaidan ocorrido na Ucrânia em 2014;

Submissão da Rússia a sanções econômicas por parte dos Estados Unidos e da União Europeia, a partir de 2014, justificada como sendo em decorrência da incorporação da Criméia;

Nesse contexto, o projeto capitalista nacional de caráter neoprussiano, sem prejuízo da acumulação capitalista fortemente marcada pela estrutura produtiva e industrial vinculada exportação de commodities minerais e agropecuárias e de equipamento e armamento militar, acelerou processo de reestruturação da estrutura produtiva industrial e agropecuária para o atendimento de demandas por bens básicos no mercado interno;


Espectro político:


- Coalizão entre capitalistas adeptos de um capitalismo nacional neoprussiano, segmentos de camadas médias e amplos setores da tecnocracia do Estado, em crescimento em termos de influência;

- Coalizão entre capitalistas neoliberais, parte das camadas médias e pequenos setores da tecnocracia do Estado, em franco declínio em termos de influência;

- Coalizão entre ultranacionalistas e fascistas estagnada, com baixo nível em termos de influência;

- Partido Comunista da Federação Russa passou a retomar crescimento em termos de influência;

- O arranjo político precedente foi preservado mais em termos de aparência do que em essência desde a posse de Vladimir Putin em 2012, pois manteve a chefia do Estado e reduziu Dmitry Medvedev à condição de um inexpressivo chefe de governo. Tal arranjo político foi desarticulado formalmente em 2020, com a renúncia de Medvedev no início deste mesmo ano, a apresentação de propostas de emendas à constituição a partir de então e a efetiva realização da reforma da constituição em 2021 – quando essa reforma obteve 78% de aprovação por parte da população. Essa reforma permitiu a Putin disputar mais dois mandatos para a Presidência da Federação Russa, de seis anos cada, após o término do seu atual mandato que se encerrará em 2024;


Acontecimentos importantes:


- Condução da integração da Criméia à Rússia em 2014. Realizando recuperação histórica: 1. Ucrânia e Rússia reconheceram a condição de República Autônoma da Criméia em 1991; Criméia proclamou independência em 1992, mas recuou e aceitou a condição de república autônoma integrada a Ucrânia, com uma constituição própria aprovada em 1995; 2. Processo de integração: no dia 27 de fevereiro de 2014, cinco dias após a deposição do presidente ucraniano Viktor Yanukovych, o Parlamento da Criméia anunciou um referendo para o dia 25 de maio de 2014, para decidir se a população crimeana optaria por uma anexação à Rússia ou se optaria pela restauração da Constituição da Criméia de 1992 que, basicamente, manteria autonomia à região e a tornaria mais independente da Ucrânia; teve curso oposição à realização do referendo pelo governo provisório da Ucrânia oriundo do golpe, Estados Unidos e diversos países da União Europeia, mas contou com apoio da Rússia e da grande maioria da população crimeana mediante passeatas e manifestações; no dia 2 de março de 2014, o Primeiro-ministro da Criméia anunciou que o referendo seria antecipado para o dia 16 de março, recebendo forte oposição dos Estados Unidos e da União Europeia; no dia 10 de março, 78 de um total de 100 integrantes do parlamento regional da Criméia aprovaram a declaração de independência da península em relação à Ucrânia, na qual foram invocados a Carta das Nações Unidas, o precedente aberto com a Independência do Cosovo e o direito à autodeterminação dos povos; no dia 15 de março de 2014, na véspera do referendo da Criméia, o Conselho de Segurança da ONU se reuniu para votar uma resolução que condenasse e não reconhecesse o referendo da Criméia, com 13 dos 15 países do Conselho votando a favor da resolução, com a China se abstendo e a Rússia exercendo o seu poder de veto; no dia 16 de março de 2014, o referendo foi realizado e no dia seguinte a República Autônoma da Criméia anunciou o resultado final (cerca de 95,5% dos votos optaram pela anexação do território à Rússia), com aprovação da sua independência por uninamidade no Parlamento da Criméia e, ao mesmo tempo, oficialização do pedido de anexação à Rússia junto ao presidente Vladimir Putin; no dia 18 de março, o presidente Putin fez um discurso a parlamentares russos no qual defendeu a reintegração da Criméia à Rússia, e logo depois foi assinado um tratado de incorporação da península à Federação Russa; no dia 22 de março, o presidente russo sancionou a lei que completava a reintegração da Criméia à Rússia, desafiando Estados Unidos e União Europeia, com estes aplicando a partir de então sanções econômicas severas à Rússia;

- A Rússia interveio na Guerra na Síria a partir de 2015, fazendo frente ao apoio político, financeiro e militar dos Estados Unidos, Arábia Saudita e Turquia às diversas forças anti-Governo Bashar Al Assad, incluindo o Estado Islâmico, levando os Estados Unidos a retirar apoio a esse movimento fundamentalista e passar a atacá-lo;

- OTAN (EUA) passou a instalar sistemas de defesa antimísseis na Romênia em 2013 – que se seguiu na Polônia em 2016;

- OTAN incorporou Montenegro em 2017.


2.2.2. Desenvolvimento político da Ucrânia entre 1991 e 2019/2020


2.2.2.1. De 1991 a 1994: Leonid Kravtchuk (Leonid Kutchma como Primeiro Ministro entre 1991 e 1994) 

As eleições na Ucrânia são realizadas para escolher o presidente (chefe de Estado), Verkhovna Rada (órgão legislativo) e os governos locais. O sistema multipartidário demanda a formação de governos de coalizão;

Leonid Kravtchuk, primeiro presidente na era pós-soviética, era um político que tinha origem na cúpula da burocracia política do regime da URSS, portanto “reciclado” como político, bem como assumindo posição pró-Rússia em termos políticos ao lado do Primeiro Ministro Leonid Kutchma;

A Ucrânia conviverá com reformas e políticas econômicas neoliberais, relativo declínio das interdependências econômicas em relação à Rússia – em profunda crise – e início de relações econômicas mais intensas com a Europa. À exemplo das demais ex-repúblicas soviéticas, foi submetida às reformas neoliberais, sendo marcada por declínio econômico, relativa desindustrialização, elevação do desemprego e subemprego, queda dos níveis de vida da população, crise dos serviços sociais, corrupção generalizada, sistema de mídia crescentemente vinculado aos monopólios de comunicação ocidentais e formação de uma oligarquia econômica com grande influência política;

Ucrânia se manteve alinhada politicamente à Rússia.


Espectro político:


- Partido Comunista da Ucrânia – fundado em 1993 como um dos sucessores da Secção Ucraniana do Partido Comunista da União Soviética, que foi banido em 1991, nas primeiras movimentações do que mais tarde viria a ser denominada “descomunização” do país –, se transformou na maior força partidária isoladamente do país até 2004. Atuou em aliança com o Partido Socialista da Ucrânia nos anos 1990, em oposição às reformas neoliberais;

- O Partido Socialista da Ucrânia também foi um dos sucessores da Secção Ucraniana do Partido Comunista da União Soviética, se orientando para um campo político de centro-esquerda, alcançando a condição de quarta força partidária do país nos anos 1990, mas decaindo eleitoralmente desde 2007, inclusive não alcançando a cláusula de barreira que à época era de 5%;

- Teve início a formação de partidos e/ou “blocos” políticos eleitorais fisiológicos, financiados pela oligarquia econômica e liderados por oligarquias políticas, que efetivamente dominou o parlamento ucraniano e a política nacional. Políticos como Leonid Kravtchuk, Leonid Kutchma, Yulia Tymoshenko, Viktor Yushchenko, Viktor Yanukovych, Petro Poroshenko e Volodymyr Zelensky personificaram esse processo; 

- O partido nacionalista Svoboda foi fundado como Partido Social-Nacional da Ucrânia em 1991, combinando características de nacionalismo radical e de extrema direita (fascismo, neofascismo, nazismo e neonazismo), mas com baixo desempenho eleitoral, não alcançando a cláusula de barreira nas eleições dos anos 1990;


- Acontecimentos importantes:


- Ocorreu a Primeira Guerra da Chechênia entre 1994 e 1996;


2.2.2.2. De 1994-2005: Leonid Kutchma (Víktor Ianukóvytch como Primeiro Ministro entre 2002 e 2004)


Político que tinha origem na cúpula científica do Regime da URSS, portanto também “reciclado” como político, e assumindo posição pró-Rússia ao lado do Primeiro Ministro Víktor Ianukóvytch;

Espectro político:

- Partido Comunista da Ucrânia foi declinando fortemente a sua importância política desde meados dos anos 1990, em especial na Ucrânia Central e Ocidental, onde predominava ucranianos étnicos e era mais integrada economicamente à Europa e culturalmente à Polônia;

- O Partido Comunista da Ucrânia participou da eleição presidencial em 1998, lançando Petro Symonenko, chegando ao segundo turno da eleição, sobre uma plataforma antineoliberal, obtendo 38% dos votos. Todavia, Leonid Kutchma, com apoio das oligarquias econômicas e políticas, foi eleito para o seu segundo mandato presidencial;

- Criação do Partido das Regiões no final dos anos 1990, de centro-esquerda, também com grande influência ao leste e sul da Ucrânia, absorverá grande parte da influência política e eleitoral do Partido Comunista da Ucrânia, mas participando com este da coalizão governista que se manteve à frente do governo até 2005; 


Acontecimentos importantes:


- A Revolução Rosa ou Revolução das Rosas foi um movimento pacífico e popular ocorrido na Geórgia em 2003 que retirou do poder o presidente do país, Eduard Shevardnadze. Ativistas deste movimento, a exemplo de outros como as chamadas ‘Revoluções’ Laranja e Euromaidan ocorridos na Ucrânia, foram financiados por agências governamentais e não-governamentais norte-americanas e europeias, pelo Departamento de Estado norte-americano, bem como pelo Instituto Democrático Nacional, o Instituto Republicano Internacional, a ONG Freedom House e o Open Society Institute do bilionário George Soros. A Doação Nacional para a Democracia, uma fundação do governo norte-americano, por exemplo, já atuava na Ucrânia desde 1988, portanto desde o início da queda dos chamados Países Socialistas do Leste Europeu e anteriormente à derrocada final da União Soviética. Outro aspecto importante foi a atuação por meio de internet e mídias digitais de organizações de extrema direita disseminando contra-informação e desinformação como o chamado "Kmara", replicando o engajamento que o “Otpor” realizou para a queda de Slobodan Milošević na Sérvia e Montenegro. Assim, sob movimentações aparentemente espontâneas ocorreram campanhas de mobilização de ativistas estudantis, ora em prol de candidatos alinhados ao Ocidente, ora em prol de movimento anti-corrupção e anti-sistema para a derrocada de regimes políticos. O "Otpor" na Sérvia e Montenegro, o "Kmara" na Geórgia, o “Zur” no movimento fracassado na Bielorrússia e o "Pora" na Ucrânia, expressavam ferramentas de guerra híbrida com técnicas de “movimentos sem violência”, articulados para a criação e/ou manipulação de opinião pública.

 

2.2.2.3. De 2005 a 2010: Viktor Yushchenko


Viktor Yushchenko foi apoiado pelos Estados Unidos e União Europeia por defender uma política pró-ocidental e de afastamento relativo da Rússia; esse apoio recebeu holofotes e uma cobertura de imprensa internacional mediante a construção de um “político anti-moscou envenenado pelo Kremlin”;

Governo Yushenko e bancada parlamentar pró-ocidente conduziram tratativas para a entrada da Ucrânia na OTAN, que efetivamente abriu as portas para esta entrada na cúpula de Bucareste em 2008.

Todavia, as oposições do Partido das Regiões e do Partido Comunista da Ucrânia no parlamento, bem como a pressão do governo da Rússia farão o Governo Yushenko recuar, o que também acarretou perda de apoio parlamentar dos partidos pró-ocidente e popular ao presidente;

Esse recuo determinou o isolamento do Governo Yushenko do cenário político e jornalístico internacional, bem como a condução de uma campanha midiática de desmoralização do seu governo, dentro e fora do país, sob a acusação de corrupção e de governo pró-Rússia. Em face dessa realidade teve a sua popularidade e base de sustentação política desintegrada; 


Espectro político:


- O Partido das Regiões, com Víktor Ianukóvytch à sua frente, cresceu e se transformou numa das maiores forças políticas do país e centralizou a oposição ao Governo Yushenko, com atuação próxima à do Partido Comunista da Ucrânia;

- A partir de meados dos anos 1990, mas, sobretudo a partir do início dos anos 2000, foi aprofundada a criação de partidos políticos liberais/neoliberais por oligarquias políticas e econômicas, com perfil político e ideológico de centro direita e direita, em torno de personalidades não raramente apresentadas como sendo de “fora da política”. Via de regra predominavam defesas político-programáticas contendo bandeiras pró-ocidente e anti-Rússia. Em torno de milionários envolvidos com as disputas políticas, com feições personalistas e populistas, formavam-se partidos ou blocos políticos, a exemplo do bloco criados em torno de Yulia Tymoshenko.

- O Svoboda, renomeado em 2004 como Associação Svoboda de Toda a Ucrânia, com influência sobre o Serviço de Segurança Ucraniano, promoverá a partir de 2005 um processo de reorganização da história do nacionalismo e ultranacionalismo ucraniano, sanitizando-o e adequando-o aos novos propósitos políticos e ideológicos do partido, subsidiando o desenvolvimento de uma “narrativa” coerentemente integrada. Para além de integrar elementos políticos e retóricos anti-russo, anti-polonês e anti-semita, incorporou em seus discursos elementos anti-sistema – anti-capitalismo, anti-burguês, anti-liberalismo, anti-globalização – e reiterou a prática de ações violentas. O Svoboda capitalizaria gradativamente o reavivamento do nacionalismo a partir da Revolução Laranja, culminando na conquista do quarto lugar nas eleições parlamentares de 2012 com 10,4% dos votos, alcançando 38 cadeiras dos 450 assentos;   


- Acontecimentos importantes:


- Teve curso a chamada Revolução Laranja: protestos e eventos políticos ocorridos entre 2004 e 2005, que tomou diversos lugares da Ucrânia, mas concentrado no oeste do país e na capital Kiev, de forte predomínio dos ucranianos étnicos e favoráveis à integração com a União Europeia e distanciamento da Rússia, defendendo a candidatura de Viktor Yushchenko, supostamente envenenado por um agente do Kremlin, em contraposição ao candidato pró-Rússia Víktor Ianukóvytch então vitorioso, que recebeu votação massiva no sul e no leste do país onde predomina população Russa e/ou russificada. A campanha de desmoralização nacional e internacional do candidato vitorioso e das eleições levou à vitória de Viktor Yushchenko, no novo processo eleitoral que se seguiu como solução da crise política. Fato que merece realce foi a denúncia de fraude horas anteriormente ao início da votação e posse simbólica de Viktor Yushchenko como presidente após a sua derrota, elevando o nível do confronto entre as forças políticas;


2.2.2.4. De 2010 a 2014: Víktor Ianukóvytch


Político pró-Rússia, Yanukovich procurou aproximações mais sólidas com Moscou e rejeitou assinar um acordo de associação com a União Europeia no final de 2013; 

Foi deposto sob intensos protestos populares, liderados por movimentos e organizações de extrema-direita, contra a ruptura do processo de associação com a União Europeia e sua aproximação com a Rússia;

Foi alvo de uma campanha midiática nacional e internacional que o acusava de corrupção e insulava política e socialmente o seu governo;

O processo culminou em um Golpe de Estado, realizado entre 18 a 23 de fevereiro de 2014, conduzido a partir de fora do Estado, comandado pelo sistema de mídia ucraniano, por organizações de extrema-direita do país e pelo Imperialismo Euro-Americano – com articulação direta da secretária-assistente de Estado, Victoria Nuland e o embaixador americano na Ucrânia, Geoffrey Pyatt – e também conduzido por dentro dele, com destaque para a Agência de Segurança da Ucrânia e a adesão de parte da tecnocracia civil e militar: era o Golpe de Estado Euromaidan, eufemisticamente denominada por “Revolução Maidan” por parte de sistemas de mídia, partidos e organizações diretamente envolvidos na sua condução;

O Golpe de Estado Euromaidan materializou um processo exemplar de guerra híbrida conduzido pelo Imperialismo Euro-Americano em aliança com determinadas frações burguesas nacionais e setores da tecnocracia civil e militar, tendo em vista subordinar a Ucrânia aos domínios políticos e dos capitais dos Estados Unidos e da União Europeia. Explorando e potencializando descontentamentos socioeconômicos, políticos e culturais, foi efetivamente capaz de incorporar elementos diversos e multifacetados no processo de desestabilização do regime político e governo legitimamente eleito, mediante, dentre outros processos, financiamento de organizações de extrema direita voltadas para mobilizar uma juventude fortemente treinada e armada para enfrentamentos diretos, ação informacional de denúncia de corrupção do governo e seu presidente por meio de campanha midiática nacional e internacional, condução de ações investigativas por parte de membros do judiciário e de órgãos de segurança em articulação com o sistema de mídia, e atuação de autoridades e políticos norte-americanos e europeus preocupados com a “ameaça aos direitos democráticos e humanos” dos manifestantes e com a construção de uma saída para a crise política instalada mediante “formação” de um novo governo. Após a queda do governo teve curso subordinação da Ucrânia aos Estados Unidos e União Europeia, assassinatos sistemáticos e exílio de militantes antifascistas, ações persecutórias contra as forças sociais e políticas derrotadas e mudanças institucionais ultrarregressivas;  

Espectro político:


- O Partido das Regiões e o Partido Comunista da Ucrânia, à frente do governo e com bases políticas sólidas no leste e sudeste da Ucrânia, ao lado do governo, se encontravam insulados em Kiev;

- Os partidos políticos liberais/neoliberais, com grande representação parlamentar, procuraram inviabilizar a governabilidade e impor a agenda de adesão à União Europeia;

- O Svoboda e demais movimentos e organizações fascistas/neofascistas e nazistas/neonazistas, com grande poder de mobilização social, sobretudo em Kiev, promoveu a radicalidade e violência para as disputas e embates políticos;


- Acontecimentos importantes:


- A atuação de organizações de extrema direita, disseminando contra-informação e desinformação por meio de internet e mídias digitais, teve um novo papel. Para além de insuflar movimentações aparentemente espontâneas de ativistas estudantis, em prol de movimento anti-corrupção e anti-sistema para a derrocada do presidente pró-Rússia, foram empregadas técnicas de violência, com grupos de extrema-direita fascista, neo-fascista, nazista e neonazista constituindo grupos armados paramilitares treinados nas bases da OTAN da Polônia e da Alemanha;

- Teve curso a incorporação da Criméia pela Rússia;


2.2.2.5. Em 2014: Olexandr Turtchynov


Governo provisório de transição de poucos meses, com vista à realização de eleições e afirmação dos objetivos do Golpe de Estado Euromaidan;

Também teve curso a autoproclamação das Repúblicas Autônomas do Donbas (Donetsk e Lugansk). No dia 7 de abril de 2014 foi proclamada a criação da República Popular de Donetsk; no dia 27 do mesmo mês foi criada a República Popular de Lugansk. As células do Partido Comunista da Ucrânia da região do Donbas, em especial de Donetsk, lideraram o processo de autoproclamação e de construção da autodefesa das recém das repúblicas criadas repúblicas;


2.2.2.6. De 2014 a 2019: Petro Oleksiyovych Poroshenko


Foi eleito Petro Poroshenko, tendo basicamente como sua única bandeira a defesa da entrada da Ucrânia na União Europeia;

Deu reinício à assinatura do Acordo de Associação à União Europeia, como primeira etapa dessa associação;

Deu início às operações militares contra as autoproclamadas Repúblicas Autônomas do Donbas; 

Conduziu iniciativas de imposição do ucraniano como única língua do país;

Foi aprovado o chamado processo de “descomunização” da Ucrânia;

Espectro político:


- O Partido das Regiões e o Partido Comunista da Ucrânia, em face do apoio aos movimentos separatistas de Donetsk e de Lugansk e à anexação da Criméia pela Rússia, foram acusados de traição pelas autoridades ucranianas, o que culminou no banimento destes partidos desde 2015, no contexto do chamado processo de “descomunização” da Ucrânia;

- O Svoboda e outras organizações de extrema direita da Ucrânia – a exemplo da Organização de Nacionalistas Ucranianos, Congresso de Nacionalistas Ucranianos, Setor Direita, Corpo Nacional e C 14 – não alcançaram a clausura de barreira de 4% à época, mantendo o contraste de organizações sociais fortemente presente no cotidiano da sociedade, com grande capacidade de mobilização e de condução de ações violentas, mas pouco expressivas em termos eleitorais. Todavia, desde então essas organizações elegeram representantes por partidos e blocos liberais e neoliberais, o que lhes assegura representação ‘informal’ no parlamento (Verkhovna Rada); 

- Reformas políticas determinaram: cláusula de barreira para evitar o surgimento de pequenos partidos; criação de listas partidárias de candidatos, com a cúpula oligárquica política e econômica que controla o partido podendo excluir e/ou alterar a ordem nas listas anteriormente às eleições, mas também trocar candidatos eleitos; banimento do Partido Comunista e do Partido das Regiões pró-Rússia e ações persecutórias contra servidores públicos civis e militares e políticos e militantes desses partidos; imposição de um bloco de forças partidárias que, ainda que disputem política e eleitoralmente, consolidaram uma plataforma em torno das políticas neoliberais, entrada da Ucrânia na União Europeia e na OTAN, fortalecimento das suas forças armadas, desrussianização do país e “descomunização” e banimento de partidos de esquerda e centro-esquerda; integração de movimentos paramilitares neonazistas nas forças armadas da Ucrânia, com destaque para o Batalhão Azov; impulsionamento de organizações fascistas, neofascistas, nazistas e neonazistas em todo o país, mas com maior força no centro e oeste da Ucrânia;   


Acontecimentos importantes:


- Foi realizado o massacre sangrento nas ruas e na “Casa dos Sindicatos”, na Cidade de Odessa, no dia 2 de maio de 2014, promovido por grupos neonazistas que estavam em ascensão, contra ativistas comunistas e antifascistas. Após este episódio teve curso, em todas as regiões da Ucrânia de influência russa, proibição do idioma russo, sequestros, assassinatos, espancamentos, estupros, impedimento de representação política dos ucranianos pró-Rússia, entre outras agressões aos direitos humanos e liberdades democráticas;


2.2.2.7. De 2019 aos dias atuais: Volodymyr Zelensky


O novo governo ucraniano, encabeçado por Volodymir Zelensky, retomou o projeto das forças sociais e políticas pró-ocidente de integrar a Ucrânia à OTAN, a partir de 2019. Todavia, foi a partir do apoio do governo Joe Biden, que se seguiu à saída dos Estados Unidos do Afeganistão e à assinatura do tratado militar do indo-pacífico AUKUS, que efetivamente esse projeto saiu de proposição e foi efetivamente para a mesa de negociação;

Zelensky atacou, desde a sua posse na presidência do país, os chamados Acordos de Minsk – Protocolo de Minsk, elaborado em 2014; e Minsk II, assinado em 2015 – que buscavam acabar com a guerra na região de Donbas, contando com a mediação da França e da Alemanha. Esses acordos previam: cessar-fogo, retirada de armas pesadas da linha de frente, libertação de prisioneiros de guerra, realização de reforma constitucional na Ucrânia concedendo autonomia a certas áreas de Donbas e restabelecendo o controle da fronteira estatal ao governo ucraniano. A subjugação das repúblicas do Donbas era pré-condição para a entrada da Ucrânia na OTAN, posto que o tratada não integra países que convivem com conflitos armados internamente;

Zelensky promoveu repressão à imprensa e mídias pró-Rússia, bem como reformas institucionais que efetivamente passaram a proteger corruptos no país, com vista a consolidar bases de sustentação política;

Em plena invasão da Ucrânia pela Rússia, Zelensky promoveu o banimento de 11 partidos políticos que se encontravam unificados em torno da Plataforma de Oposição pela Vida, no último mês de março, aprofundando o Estado ditatorial em curso no país desde 2014; 


Espectro político:


- O Partido Servo do Povo, que elegeu Zelensky presidente, foi criado em 2017 e registrado em 2018, por personagens destacadas do Serviço de Segurança da Ucrânia, como partido fisiológico e populista de direita, com retórica anti-sistema, anti-corrupção, anti-Rússia e pró-União Europeia. Embora tenha apresentado uma retórica anti-sistema, mantém características políticas neoliberais e de direita, a exemplo dos partidos ou blocos políticos que o precederam; 

- O Partido das Regiões e o Partido Comunista Ucraniano continuaram banidos do sistema político Ucraniano, aos quais se juntaram recentemente mais 11 partidos;

- O Svoboda e demais organizações de extrema direita permaneceram irrelevantes na disputa político-eleitoral, mas com forte capacidade de mobilização e parlamentares eleitos por partidos liberais e neoliberais;


Acontecimentos importantes:


- Em junho de 2021 um navio de guerra (destróier) do Reino Unido entrou em águas territoriais da Rússia no mar Negro, recebendo tiros de advertência de um barco de patrulha fronteiriça e um avião Su-24, obrigando-o a mudar o curso e se retirar dessas águas;

- Estados Unidos completaram a saída do Afeganistão em agosto de 2021;

- Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia assinaram o Tratado Militar AUKUS, em setembro de 2021, materializando um pacto militar para a região Indo-Pacífico (Oceanos Índico e Pacífico) para fazer pressão militar contra a China;

- No início de fevereiro de 2022, aviões F-15 da OTAN interceptaram quatro caças russos no mar Báltico, no mar de Barents e no mar do Norte, sobrevoando o próprio espaço aéreo Russo, numa clara provocação militar.   


2.3. De curta duração


A curta duração histórica aqui retratada compreende a conjuntura de 2021 e início de 2022, na qual se precipitam contradições e conflitos que decorrem, dentre outras, das condicionantes históricas, da crise das relações de produção capitalistas, das disputas geopolíticas e das disputas internalizadas na transição de matriz e acesso a recursos energéticos. As contradições precipitadas, por sua vez, se articulam com as condições adversas de retomada das estruturas produtivas e de transporte e logística em 2021, em reação à queda brutal dos níveis de atividade econômica, à desarticulação das cadeias produtivas globais e nacionais, à elevação dos níveis de desemprego/subemprego/marginalização social, do grande número de doentes e mortos por Covid-19, sobretudo em 2020. Retomada que ocorre em ritmo baixo em função de aspectos como desarticulação de cadeias produtivas e de transporte e logística, demanda relativa aquecida (de insumos, partes, peças e componentes) em decorrência da retomada dos níveis de atividade econômica e de demanda desassistida em função da desarticulação das referidas cadeias, elevação inflacionária em consequência desse quadro, elevada taxa de desemprego, queda dos níveis de renda salarial, elevação dos preços dos principais produtos que compõem a energia primária (petróleo, carvão e gás) e crescimento do endividamento dos Estados. Para além da disputa bruta que Estados promovem em torno de fatores de produção estratégicos (energia primária, acesso a mercados, etc), forma-se um contexto de acirramento das contradições sociais, como conflitos distributivos entre as classes em torno dos excedentes socialmente produzidos, empobrecimento de amplas parcelas da sociedade e generalização de trabalho aviltado e extremamente precário, ressentimentos étnicos, movimentos de extrema direita que impulsionam a cultura de ódio, financiamento desses movimentos pela classe burguesa como contra-revolução preventiva.


Rússia, Ucrânia e Imperialismo Euro-Americano na conjuntura aberta em 2021


Tratativas entre Ucrânia, Estados Unidos, Inglaterra e alguns países da União Europeia com vista à entrada da Ucrânia na OTAN, intensificadas após a saída da OTAN do Afeganistão, com pronta reação da Rússia em face da ameaça à sua segurança que isso representa;

Criação midiática de uma guerra desejada e inventada pela OTAN, sob liderança dos Estados Unidos e do Reino Unido, a partir de 2021;

Rússia em dezembro de 2021, em meio a tentativas de negociações e a treinamentos militares nas suas fronteiras, exigiu que a OTAN desse garantias escritas de que não incorporaria a Ucrânia na OTAN, caso contrário realizaria o que chamou de “respostas técnico-militares”. Manteve essas tentativas e treinamentos no mês de janeiro e grande parte do mês de fevereiro de 2022;

O Governo de Volodymyr Zelenskyy intensificou ações militares da Ucrânia contra as repúblicas autoproclamadas do Donbas (Donetsk e Lugansk) desde de janeiro de 2022, com vista a: 1. Subjugar as duas repúblicas separatistas e; 2. Criar as condições para sua entrada na OTAN – não são admitidos a incorporação na OTAN países com conflitos civis internos;

Reconhecimento diplomático por parte da Rússia das repúblicas autoproclamadas do Donbas (Donetsk e Lugansk) no dia 22 de fevereiro de 2022;

Rússia passou a realizar a operação militar na Ucrânia, a partir do dia 24 de fevereiro, supostamente com vista a: 1. Restabelecer os limites territoriais das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk; 2. Destruir bases militares ucranianas; 3. Desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia; 4. Inviabilizar condições científico-tecnológicas de enriquecimento de urânio e destruir laboratórios de armas químicas; 5. Pressão da Rússia para forçar acordos escritos que assegurem a não entrada da Ucrânia na OTAN;


Acontecimentos importantes:


- Saída desordenada dos Estados Unidos do Afeganistão e, ato contínuo, assinatura do Tratado Militar AUKUS entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, como instrumento de pressão sobre a China à leste da Eurásia;

- Tentativa de desestabilização política e social e de implementação de um golpe de Estado no Cazaquistão em janeiro de 2022, a partir de manifestações aparentemente espontâneas da população em face da elevação de preços dos combustíveis e produtos básicos em geral, mas envolvendo disputas entre oligarquias políticas e econômicas cazaques e serviços de inteligência do Ocidente e Turquia, com pronta atuação da Rússia para estabilizar relativamente a situação política, sustar o golpe de Estado e dar sustentação política ao atual governo;


3. Contradições das relações sociais, regimes e governos russo e ucraniano


3.1. Contradições sobre as quais se apoiam relações sociais, regime e governo russo:


Contradição de classes: “novos” capitalistas versus trabalhadores; capitalistas neoliberais integracionistas ao “Ocidente” (submissão ao Imperialismo Euro-Americano) versus capitalistas neoprussianistas (autonomia em relação ao Imperialismo Euro-Americano);

Capitalismo neoprussiano, com restrições em termos de interações complementares advindas do mercado mundial em decorrência de sanções econômicas recorrentes, que se torna dependente do mercado interno (indústria de bens de consumo não duráveis sob diversificação produtiva, mas com baixa produtividade) e da exportação de petróleo, gás e trigo (commodities primárias e produtos derivados semi-manufaturados) e de armamento militar (indústria bélica);

O capitalismo neoprussiano da Rússia, sob direção da autocracia russa, assume objetivamente um conteúdo anti-imperialista face ao expansionismo do Imperialismo Euro-Americano. Todavia, a afirmação de possível ideal, por parte da atual autocracia, de reconfiguração dos territórios da Rússia Imperial ou mesmo Rússia Soviética, pode redundar no surgimento de um imperialismo russo contemporâneo. 

Regime liberal-democrático semi-presidencialista, mas conservador (aproximação da Igreja Ortodoxa), nacionalista (retomada de elementos da ideologia grão russa) e autocrático (Estado convertido em “exclusivo político” das classes dominantes mediante configuração de poder concentrado no chefe de Estado/governo e na alta estrutura da tecnocracia civil e militar), o que desdobra no controle estrito da imprensa, de movimentos e entidades operárias e populares, de movimentos de afirmação étnica e/ou autonomistas, de movimentos LGBT, etc;  

Relações com países que resistem ao Imperialismo Euro-Americano (Cuba, Venezuela, Síria, Irã etc.), à procura da construção de um espaço político-diplomático internacional, mas com restritas possibilidades políticas e econômicas em termos de interações importantes em face de destruição militar e atraso/isolamento econômico desses países e das limitações da própria economia russa;

Aproximação e relações estratégicas entre Rússia e China, expresso por meio da declaração conjunta de Vladimir Putin e Xi Jinping no dia 4 de fevereiro de 2022, durante a abertura da XXIV Olimpíada dos Jogos de Inverno realizada na China, e do documento assinado entre os dois países, representa a defesa do multilateralismo e a vontade sólida de união estratégica entre esses países. Todavia, estando a Rússia dependente da exportação de commodities (petróleo, gás e trigo) e impedida de comercializar em duas frentes (Europa e China) por conta das sanções econômicas que lhes foram aplicadas, a sua integração à “Nova Rota da Seda” tenderá a acarretar graus diversos de dependência e de reversão do esforço de reindustrialização de determinados setores produtivos em curso desde 2014, o que pode comprometer, em alguma medida, o seu processo de afirmação como terceiro pólo de poder internacional.


3.2. Contradições sobre as quais se apoiam relações sociais, regime e governo ucraniano:


Contradição de classes: “novos” capitalistas versus trabalhadores em processo de desemprego, subemprego e empobrecimento; capitalistas neoliberais integracionistas ao ocidente (submissos ao Imperialismo Euro-Americano) versus movimentos nacionalistas insubmissos (à Rússia e, em alguma medida, ao Imperialismo Euro-Americano);

Capitalismo liberal periférico com interações complementares advindas do mercado mundial, em especial com a Europa, acarretando: desindustrialização progressiva; especialização progressiva na produção de commodities agropecuárias; endividamento externo crescente; empobrecimento e decréscimo continuado da população desde meados dos anos de 1990 em função da taxa de mortalidade exceder a taxa de natalidade, das más condições de vida e cuidados de saúde e emigração em massa. Características econômicas regressivas que devem ser acentuadas em face de algum nível de destruição de infraestrutura econômica e social e de ampliação do endividamento externo para a aquisição de armamento para a condução da guerra, bem como para a reconstrução do pós-guerra;

Estado, regime e governo liberal, autoritário e fascista, sob direção de uma autocracia política diretamente vinculada a uma oligarquia econômica reacionária e supostamente nacionalista, apoiada em partidos e organizações de extrema direita de baixo desempenho eleitoral, mas com grande capacidade de mobilização social e forte presença na tecnocracia civil e militar, tende a gerar tensões e conflitos sociais e políticos contínuos;

Regime e governo alinhado com uma imprensa ucranófila, com forte controle de povos, movimentos e organizações sociais sob influência russa e socialista, inclusive com medidas de exceção e persecutórias como a chamada “descomunização” do país em curso desde 2015 e banimento de partidos como o Partido das Regiões e o Partido Comunista da Ucrânia. Após a guerra em curso, a contradição social, política e étnica tenderá a ser aprofundada, redundando em um Estado controlado por ucranianos étnicos ainda mais autoritário e repressivo, com vista à manutenção da unidade territorial que restará;  

Subordinação ao Imperialismo Euro-Americano, inclusive reivindicando integração militar com o mesmo.


4. Cenários Futuros Possíveis


- É fundamental a compreensão de que os cenários futuros possíveis internalizam, objetivamente, as contradições e conflitos presentes nas dinâmicas das três durações históricas.


4.1. Gerais:


1. Os efeitos que a crise estrutural e de longa duração das relações capitalistas de produção, desencadeada na passagem dos anos 1970 aos anos 1980, agravado pelos choques econômicos neoliberais dos anos 1990 e da redistribuição geográfica da estrutura produtiva industrial do planeta em favor da China nos anos 2000 e 2010, está na base das determinações materiais regressivas – desemprego/subemprego, desmontagem/subfinanciamento dos serviços sociais, exclusão marginalização social, ressentimentos/frustrações. Os cenários futuros próximos tenderão a ser marcados pelo florescimento de manifestações reacionárias, dentre outras, como nacionalismo de extrema direita, ultra-conservadorismo, fundamentalismo religioso, supremacismo e fobismo social, bem como pela instrumentalização dessas manifestações por agências de segurança, políticos populistas e guerras híbridas entre Estados e organizações (jurídicas, de segurança e militares) supra-nacionais;

2. A ordem mundial unipolar baseada na hegemonia norte-americana tem como sua base material fundamental o complexo industrial-militar, a indústria de energia (petróleo, carvão e gás) e o sistema bancário financeiro (bancos, seguradoras, fundos imobiliários). Essa base material integra, controla e manipula, segundo seus interesses, instituições públicas, corporações midiáticas, indústria do entretenimento, bem como arregimenta think thanks na defesa dos seus interesses. Em síntese, trata-se de uma hegemonia articulada pelo Pentágono, Secretaria de Estado, instituições de inteligência (CIA, FBI), mídias jornalísticas (Times, The Washington Post, Reuters, CNN, Fox News), Senado, universidades e think thanks. Essa hegemonia esta desafiada (e, ao mesmo tempo, em crise) pela ascensão do poder industrial, financeiro e militar chinês e pelas reservas energéticas e poder militar da Rússia, redundando no declínio (relativo) do sistema financeiro assentado no dólar. Nesse contexto, os Estados Unidos buscam assegurar a reiteração do Imperialismo Euro-Americano, o que demanda bloquear vinculações estreitas possíveis entre as economias da Alemanha e da França – detentoras de alta tecnologia e capital – e as economias da Rússia – detentora de recursos energéticos, minerais e agropecuários – e da China – detentora de uma gigantesca estrutura produtiva industrial –, bem como promover a defesa do sistema financeiro ancorado no dólar. A China, detentora da maior estrutura produtiva industrial do planeta, procura se estabelecer como núcleo articulador de uma nova divisão internacional do trabalho que envolveria grande parte do mundo, expresso no projeto “Nova Rota da Seda”, bem como procura construir um sistema financeiro apoiado numa diversidade de moedas francamente transacionadas por meio do sistema de telecomunicações financeiras, por ela implantado, alternativo ao SWIFT controlado pelos Estados Unidos. A União Europeia, com Alemanha e a França à frente, na condição de gigante econômico (industrial e financeiro), anão político (dividido e restrito a proclamações políticas) e verme militar (com 65 anos de ocupação norte-americana e completamente subserviente à OTAN), não consegue interferir de forma autônoma e independente na ordem mundial e no sistema financeiro em redesenho, navegando dentro de limites e de possibilidades estabelecidos pelo Imperialismo Euro-Americano, sem condições de explorar plenamente condições de interação possíveis com as economias da Rússia e da China. À Rússia, por sua vez, interessa assumir a condição de fornecedor de energia, de minérios e de produtos agropecuários, usufruir da sua localização privilegiada em termos comerciais junto a regiões e países situados entre Europa e China, além de desempenhar um papel estratégico no sistema de segurança global;

3. Os Estados Unidos permanecerão na sua estratégia: 1. Abandonou a condição de país que promove ocupação extensiva sobre outros países, com retirada do Afeganistão e restrição da presença militar no Iraque e na Síria – restringindo a bases militares operacionais para assegurar o controle, extração e comercialização de poços de petróleo pelas petrolíferas norte-aericanas e Europeias –, com vista a concentrar a sua intervenção imperialista na Eurásia; 2. Desencadeou processo de provocação militarista na Europa – mobilizando o presidente e staff tecno-burocrático ucraniano a solicitar entrada na União Europeia e, principalmente, na OTAN, levando à intervenção militar da Rússia em função da sua irremovível necessidade de defesa estratégica – e no Leste/Sudeste Asiático e na região Índico-Pacífico – promovendo a criação do Tratado Militar AUKUS –, estabelecendo pressão e/ou bloqueio militar relativo instrumental sobre a Rússia e a China; 3. Os Estados Unidos passaram a liderar uma campanha de pânico europeu generalizado em torno do “agressor russo” e da ameaça que a Rússia teria passado a exercer à Europa em um futuro próximo, bem como o iminente “agressor chinês” e da ameaça que a China exerceria em Taiwan; 4. Efetivamente, os Estados Unidos promoveram: i. Ruptura da aproximação entre Alemanha, França e Rússia; ii. Bloqueio das interações possíveis entre a Europa e a China, mediante sanções/bloqueio econômico da Rússia, estratégica na “Nova Rota da Seda”; iii. Colocou a Europa refém dos recursos minerais e agropecuários dos Estados Unidos – em especial gás e trigo –, que serão oferecidos a preços muito mais elevados quando comparado aos preços russos – o gás, por exemplo, custará 40% a mais –, convertendo a Europa em transferidora de parte significativa dos seus excedentes em favor dos Estados Unidos; iv. Promoverá redução de ganhos por parte de corporações industriais cujas matrizes estão sediadas na União Europeia, abrindo mercados para capitais norte-americanos (e ingleses) penetrarem em condição vantajosa na própria Europa Continental; v. Desencadeou processos de ampliação de gastos militares e remilitarização na Europa e na Ásia, abrindo mercados aos equipamentos e armamentos norte-americanos – que a Rússia, por exemplo, usufruirá de forma muito mais restrita, seja em decorrência das sanções econômicas, seja em função da interdição de acesso a peças e componentes adquiridos junto a empresas europeias, o que comprometerá a possibilidade de entrega de armamentos mais sofisticados por parte da Rússia;     

4. A tendência é de radicalização do Imperialismo Euro-Americano e de potências regionais por meio de guerras políticas – levadas a cabo por governos, sistema de mídia, Sistema ONU, Organizações Internacionais da Sociedade Civil – econômicas – conduzidas mediante acordos comerciais, sanções econômicas – e militares – realizadas por tratados militares, mobilização de insurgentes;

5. Aprofundamento da subordinação da Europa aos Estados Unidos, sob a vigência do Imperialismo Euro-Americano, mediante afastamento da complementariedade possível entre indústria moderna da Europa – com Alemanha e França à frente – e recursos minerais e agropecuários da Rússia;

6. Reiteração ampliada da dependência da Europa dos recursos minerais e agropecuários dos Estados Unidos, do Canadá e da Austrália, com elevados custos de produção e de transportes em geral, com maior realce para gás e trigo, com desdobramentos em termos de queda dos níveis de acumulação do capital, impulsionamento à concentração e centralização de capitais, queda das bases fiscais dos Estados e queda dos níveis de renda salário, de vida da população e de serviços públicos;

7. A tendência de conformação de dois grandes blocos políticos e econômicos que disputam mercados, recursos naturais, propriedade científica e tecnológica e moeda de transacionamento – a saber: Estados Unidos e União Europeia, acompanhados de países como Japão, Reino Unido, Canadá e Austrália; e China e Rússia, possivelmente acompanhados de países como Índia, Paquistão e Cazaquistão –, entrará em franca contradição com a divisão internacional do trabalho que se materializou na chamada globalização neoliberal, formada nos últimos 40 anos, impondo um longo período de transição. Globalização que envolvia, para além de abertura de mercado, desregulamentação econômica, desagregação de cadeias produtivas, privatização do setor público e restrição das funções sociais do Estado, no plano nacional, e aspectos fundamentais como movimentação de capitais e tecnologias entre países, metabolização de capital financeiro em capital produtivo e vice-versa no universo dessa movimentação, superávits de balança comercial utilizadas para financiar dívida pública e consumo do país hegemônico detentor da moeda de conta e, sobretudo, estratégias de fornecimento global de insumos, peças, partes e componentes em detrimento de cadeias produtivas nacionais, no plano internacional. A conformação de dois grandes blocos políticos e econômicos concorrenciais tenderá a reproduzir, em escala territorial delimitada pelo efetivo espaço hegemônico de cada bloco, processos de concentração/centralização de capitais e “integração”, “cooperação” e “complementariedade” política e econômica entre seus integrantes, mas sob dadas possibilidades e limites em termos de demanda interna real, energia primária disponível e domínio científico-tecnológico avançado, que redundarão em custos de produção e níveis de produtividade distintos. A tendência de elevação da composição orgânica do capital e limites quanto a condições materiais de produção, se desdobrando em capital financeiro e produtivo superacumulados, radicalizarão disputas do espaço político e econômico externo aos dois blocos. Tal tendência, de um lado, levará progressivamente ao colapso da “globalização neoliberal”, expresso em um mercado mundial integrado, posto que configurará em dois grandes blocos internamente integrados e demarcados política e economicamente, bem como levará a diversos países, áreas e blocos regionais relativamente independentes política e economicamente dos dois grandes blocos, com espaços de manobra que poderão contemplar processos de conformação de cadeias produtivas/reindustrialização nacional/regional. Por outro lado, os dois grandes blocos demandarão estruturas político-militares para a defesa do seu espaço territorial delimitado e desestabilização dos demais espaços territoriais do bloco concorrente e dos diversos países, áreas e blocos regionais relativamente independentes em termos políticos e econômicos, com vista a contornar suas crises internas de superacumulação. Esse contexto de transição – de um sistema de Estado subordinado ao Imperialismo Euro-Americano sob a hegemonia dos Estados Unidos e de uma globalização neoliberal fundamentada no dólar como moeda de conta inconversível, nos fluxos de mercadoria, capitais e serviços e na estratégia de fornecimento global de peças, partes e componentes, de um lado, para a constituição de dois blocos políticos disputando o sistema de Estados e de dois blocos econômicos instituidores de divisão do trabalho em seu favor no universo do território como espaço hegemônico de cada um, de outro lado – estará marcado por uma defasagem entre o tempo de instituição do Estado/blocos políticos (à frente) e o tempo de instituição do mercado nacional/bloco econômico (à trás). Tal processo, para além do robustecimento do papel e função do Estado, objetivamente ampliará a dissonância entre estruturas reprodutivas materiais do capital e formação de Estado a elas integradas como seus dirigentes institucionais. Desse modo, Estado/blocos políticos radicalizarão políticas demandadas pelas referidas estruturas reprodutivas, o que reiterará fenômenos como planejamento econômico, modelagem da força de trabalho e organização/gestão ambiental segundo suas necessidades, mobilização de guerras híbridas e por procuração, etc.; mas, contraditoriamente, o fortalecimento do papel do Estado poderá ampliar espaços para a representação e demandas da classe trabalhadora e para as forças políticas de esquerda na medida em que essa classe e forças políticas sejam capazes de suplantar o insulamento desse Estado como “exclusivo político da classe dominante”. 

8. Reafirmação da OTAN e do seu papel como instrumento ofensivo do Imperialismo Euro-Americano para atuação mundial, aprofundando o papel já assumido nos ataques ao Iraque (2003), Síria (2011) e Líbia (2011). Todavia, no que tange especificamente ao Oriente Médio, a vitória militar das forças governamentais na guerra civil da Síria, com apoio militar da Rússia e do Irã via Hezbollah, bem como as vitórias militares das forças rebeldes hutis no Iêmen, de orientação xiita, também apoiadas pelo Irã, tem efetuado sobre forças políticas e militares diretamente vinculadas à OTAN ou aliadas a essa organização, evidenciam o crescimento da capacidade de resistência de governos e forças sociais e políticas que resistem à dominação euro-americana no Oriente Médio. Nesse contexto, OTAN e seus aliados – Israel, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos – tem encontrado na Rússia e, principalmente, no Irã resistências organizadas que tem permitido alterar (relativamente) a correlação de forças, expressos no descolamento do domínio imperialista no Irã, Iraque, Síria e Líbano;

9. Rearmamento de países da Europa Ocidental, que deve se articular à retomada do nacionalismo de extrema direita, desencadeando corrida armamentista e insegurança mútua entre os próprios países abrigados na OTAN;

10. Elevação inflacionária mundial, acompanhada de políticas econômicas ortodoxas de combate à inflação ancoradas em elevação de taxas de juros, com consequente pressão fiscal do Estado pelo lado da despesa advinda da elevação do custo da rolagem da dívida pública, de um lado, e queda brutal dos níveis de atividade econômica e redução da base fiscal dos Estados pelo lado da receita, por outro, acarretam tendências de cenários de futuros marcados por estagflação, elevação do endividamento público, redução da massa de capitais voltados a investimentos produtivos e refúgio dos mesmos na esfera financeira, redução dos níveis de emprego formal/informal e de renda salário da classe trabalhadora em geral e tendência de radicalização de conflitos sociais;

11. Na Europa Ocidental, deve ocorrer elevação inflacionária e queda acentuada dos níveis de vida da classe trabalhadora; na Europa Oriental, esta elevação e queda deverão ser muito mais intensas, com consequente potencial de intensificação de conflitos políticos e sociais intra e inter-Estados;

12. Tendência de conflitos armados mais numerosos e balcanização da Eurásia Ocidental, ainda que sem cobertura dos sistemas de mídia, a exemplo dos 8 anos de ação militar ucraniana no Donbas;

13. Movimentação intensa do Imperialismo Euro-Americano via embaixadas, agências de espionagem e OTAN, com vista na desestabilização de governos na Eurásia Ocidental e Central não diretamente subordinados ao chamado “Ocidente”, bem como de sustentação de governos alinhados mediante desagregação de oposições políticas e sociais;

14. Essa movimentação do Imperialismo Euro-Americano tenderá ser intensa também na América Latina, a partir de relações, acordos e protocolos estabelecidos com o chamado “Estado profundo” – cúpulas das agências de segurança, forças armadas, Judiciário, etc. –, a exemplo do que foi a chamada “Operação Lava Jato” no Brasil. Portanto, não haverá continente, país, Estado, governo e classe social que poderá escapar dessa movimentação, tendo que optar entre subordinar ou resistir;

15. Ações reiteradas de rebaixamento dos níveis de compreensão dos fenômenos e disputas políticas, geopolíticas, culturais e militares, por meio de manipulação de dados e de produção de informações/desinformações por parte do sistema de mídia, da produção cultural (indústria cultural), de think thanks euro-americanos, da mobilização instrumentalizadas das big techs (Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook-Meta) e de organizações de extrema direita de atuação cibernética, com vista a estabelecer “narrativas” e a promover a apreensão da realidade por uma via dual – bem versus mal, governante bom versus governante mau, país civilizado-democrático versus país bárbaro-autoritário, com consequente satanização de governantes – a exemplo de Putin – e fobização de países – como a Rússia atualmente;

16. Tendência de formação de movimentos pacifistas ecléticos em termos políticos e ideológicos em diversos países, de forma espontânea e pouco orgânicos e representativos, defendendo uma ordem mundial baseada na paz, cooperação e colaboração entre os países. Movimentos que poderão ser facilmente instrumentalizados pelo Imperialismo Euro-Americano a partir de mobilização de organizações da sociedade civil, do sistema (oligopolista) de mídia e da indústria do entretenimento;

17. Todavia, o Imperialismo Euro-Americano, em especial por meio da atuação hegemônica dos Estados Unidos, tenderá a acirrar a ofensiva política, econômica e cultural contra a Rússia pelo menos a curto e médio prazo. A guerra na Ucrânia deve ser apreendida como uma guerra da OTAN em que essa organização arma, treina e mobiliza terceiros (forças armadas e batalhões fascistas ucranianos e mercenários, fascistas dos mais diversos países e, em algumas altura do conflito, soldados das forças armadas de países que integram a OTAN lutando sem bandeira), numa cruzada econômica, político-militar e cultural, encarregando-os de conduzi-la, cujo desfecho tenderá a ter desdobramentos de grande importância na correlação de forças internacionais. A vitória da OTAN na guerra da Ucrânia inibirá o movimento de independência e autonomia relativa que diversos países procuram ter nas relações internacionais, quanto a relações comerciais, aplicação de sanções, moeda de transação, etc., bem como gerará um contexto desfavorável aos movimentos que resistem à OTAN e seus aliados em regiões como Oriente Médio e América Latina. Por outro lado, a vitória da Rússia na guerra da Ucrânia deverá gerar justamente um movimento contrário, ampliando as relações políticas, econômicas e culturais que o bloco estratégico China-Rússia poderão estabelecer, sobretudo na Ásia e na África. Poderá assumir a condição de estímulo para movimentos que resistem à OTAN e seus aliados e aos capitais bancários e corporativos norte-americanos e europeus numa diversidade de países. Também poderá concorrer para a criação de condições mais favoráveis para a afirmação de bandeiras como desnuclearização e eliminação de armas químicas na Europa e outros continentes, bem como de enfrentamento de processos de fascistização e nazistificação em curso em escala mundial. Portanto, a intervenção militar da Rússia na Ucrânia carrega, objetivamente, elementos anti-imperialistas;

18. O acirramento das disputas entre o bloco Imperialista Euro-Americano e o possível bloco que poderá emergir da aliança estratégica China-Rússia hiperpotenciará a defesa da hegemonia norte-americana na América Latina. Para além de acordos militares e das articulações em nível do “Estado Profundo”, sistemas de mídias e instituições religiosas, os Estados Unidos tenderão recorrer a processos de fascistização da sociedade e do Estado na perspectiva de defesa e aprofundamento dessa hegemonia. Essas contradições de interesses tenderão a se apresentar fortemente entre classes dominantes das grandes economias exportadoras de commodities minerais e agropecuárias – Brasil, Argentina e México –, posto que os Estados Unidos são competidores desses produtos no mercado mundial enquanto a China é a grande demandante, o que também tenderá a impor transações econômicas em moedas alternativas ao dólar. Essas contradições também poderão abrir espaços para projetos de reindustrialização de determinados setores produtivos, gerando novas contradições com o Imperialista Euro-Americano. Todavia, essas contradições, sob a hegemonia das classes dominantes latino-americanas, dificilmente redundarão em projetos político-econômicos de rupturas com esse imperialismo, na perspectiva de um projeto nacional de desenvolvimento, muito menos de caráter popular. As classes dominantes tão pouco estarão dispostas a prescindir da condição de gendarme do Imperialismo Euro-Americano em face de revoluções populares na América Latina. A tendência é que as classes dominantes latino-americanas, especialmente aquelas situadas no Cone Sul, busquem margens de independência e autonomia de negociação com os grandes blocos em disputa. Por outro lado, esse contexto poderá proporcionar maiores espaços para a intervenção dos movimentos sociais da classe trabalhadora e forças políticas de esquerda com base em programas mínimos que contemplem reformas estruturais, como de democratização da terra, direitos sociais e representação política.   

19. A tendência é que se perpetue, em termos de média duração histórica, a ausência de uma estratégia internacionalista dos trabalhadores, em defesa de uma paz baseada na derrota das provocações militaristas imperialistas, nacionalistas agressivas (fundados em idealizações históricas precedentes e/ou afirmações hegemônicas regionais) e fascistas/neofascistas e nazistas/neonazistas, apoiada na livre associação e complementação dos povos e nações, com base em um programa anti-imperialista e anti-capitalista. A construção dessa estratégia dependerá, em grande medida, da suplantação de vertentes sociais e políticas liberais, sociais-democráticas e trabalhistas associadas a um modo de governar neoliberal e a um modo de articular organização-mobilização social e representação política subordinado à dinâmica institucional (parlamentar e eleitoral), bem como da construção de uma organização mundial que reúna forças partidárias, sindicais, popular e de juventude emancipatórias e internacionalistas.  


4.2. Específicos:


4.2.1. Rússia:


1. Tendência de aprofundamento do ressentimento russo em relação ao “Ocidente” – cujas raízes remontam aos choques neoliberais recomendados pelo Banco Mundial/FMI e pelos principais economistas ocidentais, pela perda de territórios e populações que no passado a integraram ou estiveram sob sua influência direta, pela continuidade e expansão da OTAN, pela agressão político-cultural permanente e continuada, por recorrentes sanções econômicas, em curso desde os anos 1990 – e do seu efetivo cerceamento quanto à integração política e econômica com a Europa e à política de segurança coletiva hemisférica compartilhada – também em curso desde os anos 1990 –, o que tende a reiterar o projeto hegemônico na Rússia, calcado na compreensão de que o país somente poderá sobreviver pela via do seu próprio soerguimento, liderado por um Estado (burguês) autocrático-nacionalista, baseado numa economia (nacional) neoprussiana sólida, diversificada e relativamente autárquica, bem como pela preservação da sua identidade cultural, religiosa e moral (costumes). Tal projeto também tende a reiterar elementos do nacionalismo grão russo e agressividade defensiva do território, população e cultura, o que pode concorrer para o desenvolvimento de características de agressividade ofensiva (imperialismo);

2. Tendência de retomada de influência política relativa de frações burguesas críticas do projeto de desenvolvimento capitalista neoprussiano e resistente a uma subordinação aos Estados Unidos e à União Europeia, com influência social em segmentos das classes médias, à medida que os efeitos das sanções econômicas aumentem;

3. Tendência de continuidade da diversificação da estrutura produtiva industrial e agropecuária russa para o atendimento das demandas de produtos básicos internamente, mas condicionado às interações econômicas com a China;

4. Tendência de reiteração da autocracia russa para a defesa da integridade territorial e dissuasão de oposições internas;

5. Encaminhamento para o isolamento da Rússia em relação ao chamado “Ocidente” (Estados Unidos, Europa e Canadá) e condução de uma campanha internacional russofóbica e de satanização de Putin;

6. A Rússia, que pode vir a incorporar da Ucrânia territórios e população mais amplos do que os representados pela Criméia e Donbas, deve abrir processo com vista a integração da Bielorrússia;

7. A Rússia poderá recuperar prestígio político e militar em face de vitória no conflito armado, da capacidade de imposição de compromissos de desarmamento da Ucrânia no que tange a armas nucleares e químicas, da garantia de não integração da Ucrânia na OTAN, bem como da não ocupação do país;

8. Os efeitos das sanções econômicas contra a Rússia tenderão a ser mais severos inicialmente, posto que o país está atando relações econômicas mais intensas com a China, deverá contar com a entrada de recursos a partir do início do funcionamento das instalações de fornecimento de gás para a China previsto para 2024, poderá utilizar a parte mobilizável das suas reservas cambiais (principalmente as reservas em ouro) para suportar os efeitos mais deletérios dessas sanções e deverá ter relaxada as sanções no que tange a exportação de gás russo para uma Europa carente à medida que o conflito se encerre ou congele; 

9. Aprofundamento de laços da Rússia com a China, em especial por meio da oferta de gás, petróleo e bens agropecuários, mas com uma tendência a se desenvolver em condições desfavoráveis à Rússia em consequência dos impactos que as sanções econômicas deverão acarretar à sua estrutura produtiva em termos de acesso à tecnologia europeia, comprometendo produtividade e/ou desagregando setores em processo de reindustrialização e de modernização, sobretudo pelo impacto da entrada de produtos chineses;

10. Ataque continuado e permanente à Rússia com vista à sua desagregação, sob a forma de guerras híbridas informacionais (russofobia, isolamento cultural, etc.) e físicas (financiamento e treinamento por parte da OTAN de jihadismos, células de sabotagens fascistas/neofascistas e nazistas/neonazistas, movimentos separatistas, movimentos liberais de costumes, etc), bem como de pressão e ações militares;

11. Cenários futuros favoráveis a movimentos e partidos socialistas na Rússia em decorrência da queda dos níveis de vida e salários, mas sob intensa vigilância e/ou repressão estatal.

    

4.2.2. Ucrânia:


1. Tendência de subordinação econômica completa da Ucrânia aos capitais europeus e norte-americanos, de surgimento de uma república independente na região do Donbas (que pode incorporar outras regiões à leste da Ucrânia) alinhada à Rússia e de aprofundamento da sua desindustrialização, com consequente especialização na produção de commodities, queda dos níveis de emprego e agigantamento da pobreza e marginalização social;

2. As compras militares para o desenvolvimento da guerra com a Rússia e a reconstrução da infraestrutura econômica e social da Ucrânia após a guerra aprofundará a sua dependência financeira em relação aos Estados Unidos e União Europeia;

3. Tendência de aumento da dependência do país quanto à renda proporcionada pelo gás russo que passa sob seu território, imprescindível na composição do seu PIB, o que preservará uma forte influência da Rússia sobre o país;

4. Tendência de redução acentuada de território e de população da Ucrânia, em função da incorporação dos mesmos à Rússia 

5. Transformação da Ucrânia, no pós-guerra, em um país mais instável social e politicamente, marcado pela agressão continuada aos direitos humanos, pela condição de centro de irradiação internacional de movimentos de extrema direita e de fornecimento de mercenários extremistas mobilizáveis pelo Imperialismo Euro-Americano à serviço de guerra híbrida;

6. Intensificação de conflitos e violência étnica envolvendo ucranianos étnicos e ucranianos russos, poloneses, búlgaros, romenos, ciganos e judeus;

7. Cenários futuros favoráveis a movimentos e partidos socialistas em termos das condições objetivas, mas sob intensa repressão estatal e de movimentos de extrema direita.


Fontes:


- HARVEY, David. Sobre os recentes desenvolvimentos na Ucrânia: uma declaração provisória. In: https://desacato.info/

- COGGIOLA, Osvaldo. Ucrânia: guerra “local” e crise mundial. In: https://aterraeredonda.com.br/

- FIORI, José Luís. O controle militar da Ucrânia. In: https://aterraeredonda.com.br/

- RITTER, Scott. A operação militar russa na Ucrânia. In: https://aterraeredonda.com.br/