Evento: Sarau Porta Vermelha movimenta a vida cultural de Goiânia

O evento, idealizado pelo Círculo de Debate e Reflexão: Arte, Cultura e Estética, foi realizado no sábado, 2 de setembro, na Sede da Escola de Formação Socialista


A Sede da Escola de Formação Socialista (EFS) foi palco de uma noite cultural repleta de atividades artísticas durante a realização da primeira edição do Sarau Porta Vermelha, que agitou a Região Central de Goiânia no dia 2 de setembro de 2023. O evento, construído pelo Círculo de Debate e Reflexão: Arte, Cultura e Estética da EFS, reuniu exposição de artes visuais, declamações de poesia, apresentações de música, além de um ambiente de comes e bebes, venda de livros e artesanato e brechó. Foram mais de 150 pessoas reunidas para apreciarem uma diversidade de manifestações culturais, em um ambiente receptivo e diverso.

Sob condução de Sarah Silva e Paulo Maskote, o palco teve teor variado, mas predominaram as poesias de cunho social. Poemas de autores como Pablo Neruda, Hilda Hilst, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, Bertolt Brecht, com destaque para o jataiense José Godoi Garcia, “a voz do modernismo em Goiás”, cuja vasta obra transita do romance ao ensaio, e para a goianiense Maria de Jesus Rodrigues, pioneira da ocupação habitacional do Jardim Nova Esperança em Goiânia. Destacaram-se momentos de apresentação de poesias autorais, sobretudo os slams, em que Sarah Silva, Gabriel Fontes, Mari Ribeiro, Levi Nascente, Rick Silva, Niel Lima e Kataryn Kelvia, entre outros, declararam poeticamente sua voz de resistência. Isso tudo, dividindo espaço com as apresentações musicais, que foram de clássicos da MPB e do samba até as apresentações de músicas autorais, como Jobim das Oliveiras e Hemon Vaz. Para as crianças, foi organizado um espaço acolhedor, com brinquedos e livros. Como o palco também esteve aberto a elas, um momento de destaque foi a apresentação da Maria Eduarda Pontes, que leu a história da bailarina que pintava sua sapatilha, arrebatando de ternura a plateia e a ensinando sobre a inserção da mulher negra em todas as esferas da sociedade. No âmbito das artes visuais, as exposições foram todas autorais: Luminismo e o Coletivo Magnífica Mundi expuseram fotografias; Jackeline Vitoretti (Jacvi), pinturas em tela; Thomaz, desenhos e adesivos e Paulo Miguel Fonseca, gravuras. Na área externa, enquanto Lorena Cristhiny e Gabriel Couf realizavam grafites em um dos muros da EFS, as barracas vendiam desde comes e bebes até camisetas, quadros, adesivos e marca-páginas. Nesse ambiente, merecem destaque as telas da artista e artesã Andy e o fanzine Raios de Liberdade - Pedaços de Criação LGBTI+, organizado e idealizado por Dani Correa, em coparticipação de Astra Barbosa, Geovanna Maia, Kairo Iwry, Leo Alves, Mariana Mandu e Mikaela Pastana. As comidas e as bebidas foram organizadas e vendidas por diversas frentes de atuação política, sindical e estudantil e o dinheiro arrecadado com as vendas reverteu-se ao financiamento das lutas encampadas por essas frentes. A lucro da venda livros, broches e camisetas de algumas barracas também se voltou ao financiamento da luta.


Concepção do Sarau Porta Vermelha 

O Sarau Porta Vermelha é um projeto promovido pela EFS e realizado pelo Círculo de Debate e Reflexão sobre Arte, Cultura e Estética Marxista, como parte de suas atividades práticas com vistas ao atingimento dos objetivos estabelecidos no projeto do próprio Círculo, com destaque para o contato concreto com as artes com vistas à percepção e à construção de caminhos possíveis para a formação e emancipação humana. Toda a proposição e elaboração do Sarau é uma construção coletiva de seus organizadores: o nome do sarau, o logotipo, os objetivos, a estruturação do palco, a disposição das variadas artes, tudo foi definido e organizado coletivamente.

O Círculo de Debate e Reflexão sobre Arte, Cultura e Estética Marxista foi formado em fevereiro de 2023 e o projeto de um sarau se apresentou como uma alternativa para reunir em uma só atividade a concretude da arte, da cultura e da estética trabalhada, muitas vezes, de maneira mais abstrata e expositiva nas reuniões do Círculo. O entendimento é o de que um evento dessa natureza é capaz de manifestar a arte e a cultura em uma via de mão dupla, em que aqueles que assistem são também os que realizam, dando protagonismo a todas e todos que desejarem entrar em contato com a arte em condição ativa.

As reuniões do Círculo ocorrem pelo menos uma vez por mês na EFS, que também realiza atividades de formação, debates e análises de conjuntura. Atualmente, está sendo realizado um curso de formação em teoria e política marxista, cujo eixo é Estado, Política e Classes Sociais.



Veja algumas fotos do Sarau.


Siga a EFS no Instagram, para não perder nada: @escolafsocialista




Debate Especial - O Mal-Estar na Civilização | Mona Bittar

 


Subjetividade e contradições do capital

Profa. Dra. Mona Bittar*


A discussão que se propõe desenvolver aqui se destaca sobretudo neste contexto social no qual o humano tem sido insistentemente subsumido à lógica mercantil, sob a égide do consumo e em uma dimensão que elege e venera a  presentificação do tempo e a imediaticidade da história. É nesse sentido que se buscará aqui trazer alguns elementos da psicanálise freudiana, no diálogo com outras áreas de conhecimento, de forma a contribuir para esse debate acerca da relação indivíduo e sociedade, objetividade e subjetividade, singularidade e universalidade.

Se o mundo contemporâneo conforma a ideia de um indivíduo autônomo, particular, independente e essa ideia se revela uma ilusão, trata-se de discutir a constituição do indivíduo a partir das mediações culturais que o constituem como dimensão de uma realidade que o marca concretamente.

Está clara a importância de não analisar os determinantes objetivos e subjetivos como fenômenos isolados, pois eles são realidades que se inscrevem numa totalidade que não pode negar as tensões resultantes do confronto entre as  demandas objetivas e as subjetivas. Assim, a discussão deve ocorrer no interior do processo civilizatório, visto que o desenvolvimento psíquico se materializa na história, sob determinadas condições concretas que conformam tanto a existência da sociedade quanto a do indivíduo.

Nesse sentido, no contexto dessa particularidade da organização do modo de produção capitalista, vai sedimentando e legitimando um determinado tipo de procedimento da razão, que se alastra e assume contornos cada vez mais bárbaros e perversos. Submetido às leis do mercado, consolidam-se não apenas os processos de reificação da mercadoria, do produto do trabalho, mas do próprio homem, de relação entre pessoas em relação encoberta por coisas. A fragmentação do objeto da produção é também fragmentação do sujeito, convertendo os processos de objetivação e subjetivação em individualização, abstração e alienação. Tem-se, portanto, uma sociedade que, ao converter tudo em mercadoria, converte o próprio homem em mercadoria.

Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção que produz bens [...]. A realização do trabalho aparece na economia política como desrealização do trabalhador, a objetivação como perda e servidão do objeto, a apropriação como alienação (MARX, 2004, p. 80).   

A violência, o negacionismo, a intolerância e o mito são, sem dúvida, irracionais. Como também são irracionais as formas de organização social e econômica hoje hegemônicas, que condenam a maior parte da humanidade à miséria e que ainda ameaçam o futuro de todos, em nome do progresso econômico. Torna-se, assim, necessário, em tempos contemporâneos, o questionamento sobre as condições do processo civilizatório e os fundamentos que sustentam a construção dessa civilização. Como já alertava Freud (1978 [1930], p. 151),

Já é tempo de voltarmos nossa atenção para a natureza dessa civilização [...]. Não procuraremos uma fórmula que exprima essa natureza em poucas palavras, enquanto não tivermos aprendido alguma coisa do seu exame. Mais uma vez, portanto nos contentaremos em dizer que a palavra civilização descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos. 

Com base na leitura de “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1980 [1914]) e  “Os instintos e suas vicissitudes” (1974 [1915]), sabe-se que o indivíduo, deixado à deriva do princípio do prazer, estaria sujeito à vida instintual, buscando de forma desenfreada o prazer absoluto, que possivelmente resultaria em sua morte. Isso porque, segundo Freud (1978 [1930]), nessa busca, o indivíduo não cessaria em subjugar outros homens, matando-os, caso necessário, em nome de obter prazer e afirmar sua superioridade, e ficando à mercê de outros indivíduos que, seguindo seus desejos, também agiriam da mesma forma. 

Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvidas sobre a sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma dele ser executado: todas as normas do universo lhe são contrárias (FREUD, 1978 [1930], p.141). 

Se as relações sociais instauram a civilização e marcam as restrições à satisfação pulsional, o conflito entre as demandas do indivíduo e as exigências impostas pela cultura é recíproco e solidário a esse processo, pois a garantia da manutenção da cultura é o investimento psíquico por parte de cada indivíduo perante a exigência da repressão das pulsões. O mal-estar originado pelo sacrifício da pulsão coloca a incompletude na base da constituição do indivíduo, ou seja, o reconhecimento da ideia da incompletude lhe é a possibilidade de ver que as exigências impostas pelo processo civilizatório não possibilitam a realização do seu desejo. 

Essas questões são objeto de estudo de Freud ao discutir a origem e os caminhos do processo civilizatório, o que o leva a afirmar que "[...] todo indivíduo é virtualmente inimigo do processo civilizatório, embora se suponha que esta constitui um objeto de interesse humano universal" (FREUD,  1978 [1927], p.88). Dessa forma, a civilização se funda na repressão do desejo e estabelece as normas que regulam as relações entre os homens. 

Freud (1978 [1930]) explica, assim, que o elemento de civilização entra em cena como a primeira tentativa de regular esses relacionamentos. Se essa tentativa não fosse feita, os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que significa dizer que o homem fisicamente mais forte dominaria em nome dos seus interesses e impulsos. E observa: “A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como força bruta” (FREUD, 1978 [1930], p.155). 

Freud coloca em causa a natureza das alterações mentais no indivíduo e as necessidades do sujeito que o levam à adesão ao grupo, ou seja, a explicação dessa adesão deve ser buscada nos aspectos subjetivos, na dinâmica psíquica do indivíduo. A partir dessas considerações, funda os princípios explicativos da adesão referidos ao conceito de libido, apontando que as relações estabelecidas no grupo se estruturam com base nela. 

As relações com o outro se consolidam como consequência do caminho trilhado pelo amor reprimido em sua finalidade. Se um elo deve ser buscado no que mantém o grupo unido, esse elo é Eros. Ao abandonar a sua distintividade, o indivíduo não o faz por outra razão que não por amor. “Somos de opinião, pois, que a linguagem efetuou uma unificação inteiramente justificável ao criar a palavra ‘amor’ com seus numerosos usos, e que não podemos fazer nada melhor senão tomá-la também como base de nossas discussões e exposições científicas” (FREUD, 1996 [1921], p.102). 

A identificação assume a expressão dos laços emocionais com o outro e permite compreender como o indivíduo, ao se deparar com um objeto, deixa que este assuma o estatuto de um modelo numa dinâmica em que o outro passa a ser assimilado internamente por ele. 

Os laços libidinais, na sua forma modificada, convertidos em afeto, são condições para a relação do indivíduo com os demais indivíduos. É sob esse aspecto que são possíveis os vínculos afetivos com os outros, pois as pulsões inibidas em seus objetivos é que garantem os laços emocionais. 

Posso agora acrescentar que a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem que acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este (FREUD, 1978 [1930], p.175). 

Freud reitera que o amor é um dos princípios sob os quais a civilização se funda em nome da possibilidade da vida em comunidade, quando a pulsão sexual, desviada da sua finalidade, se expressa para todos os homens e os objetivos sexuais se transformam, inibidos em sua finalidade, na possibilidade dos vínculos sociais. Esse sentimento continua a operar na civilização tanto na sua forma original, que não renuncia à satisfação sexual propriamente dita, quanto em sua forma modificada, como afeição   e, em ambas, a função é a de garantir os vínculos entre as pessoas. 

A civilização, além da repressão da pulsão sexual, atua, também, sobre outros elementos que podem gerar conflitos nas relações entre os indivíduos. Nesse sentido, restringe a “inclinação para a agressão”, pois “[...] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas [...] ao contrário, são criaturas em cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade” (FREUD, 1978 [1930], p.167), em nome da preservação da cultura, visto que a tendência à agressividade é uma ameaça ao processo civilizatório. 

Ao discutir as pulsões agressivas, Freud as explica como derivações das pulsões de morte e afirma que a presença das tendências agressivas no homem como uma “disposição instintiva original e autossubsistente” representa uma ameaça ao processo civilizatório. 

Acho que se tem que levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, antissociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana (FREUD, 1978 [1927], p. 89). 

Se, por um lado, a serviço de Eros, a civilização impõe restrições à pulsão sexual, que, desviada de sua finalidade, estabelece e funda as possibilidades das relações sociais, quando os homens estão ligados entre si libidinalmente, Freud (1978 [1930], p.175) alerta: “Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização”. E evidencia os mecanismos desencadeados pela civilização no sentido da coerção a essa pulsão, considerada o maior impedimento para o projeto civilizatório. Por conseguinte, afirma que: 

A civilização tem que utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e, daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem (FREUD, 1978 [1930], p.167). 

Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de morte descoberto lado a lado de Eros, com quem este divide o domínio do mundo.

Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu” (FREUD, 1978 [1930], p.175). 

Logo, essa forma de violência provém das pulsões de morte, que juntas com Eros (pulsões de vida) seriam responsáveis pelo progresso e, em alguns casos, pela destruição. Segundo Crochic (2002, p. 2), 

Silenciosas as pulsões de morte destroem para eliminar a tensão existente, quando dissociadas das pulsões de vida; quando associadas,  a destruição pode ser necessária para o progresso e também para os movimentos que tornam a sociedade mais justa; nesse sentido, a violência não é somente criticável, mas pode ser necessária quando tem um objetivo racional a ser obtido, que visa justamente alterar uma situação que é violenta na sua base. 

Freud relata outra forma de violência gerada pela vida em comum, no texto  “O mal-estar na civilização”, que se expressa ao apresentar o conceito do narcisismo das pequenas diferenças, quando na formação dos grupos a hostilidade que seria dirigida a todos é desviada para um alvo externo; assim, um outro delimitado como a negação do grupo se configura como um ideal, mobilizado pelo ódio, unindo todos aqueles que o odeiam. “[...] podemos ver que se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil” (FREUD, 1978 [1930], p.169). Em vista disso, é possível entender as hostilidades entre nações e em relação às minorias. E, vejam, dessa negação de quem está de fora (diferente) depende a conservação das instituições. 

A conservação das instituições depende dessa negação de quem está de fora. O preconceito, nesse sentido, é conservador do grupo formado [....] pois há alguém externo que pode receber sua vontade de destruição. A diferença ilusória é ampliada até não podermos mais nos identificar com esse outro estranho, demasiado familiar, pois, claro, sobre ele projetamos o que não suportamos em nós (CROCHIC, 2020, p. 2). 

Cabe destacar, pois, que as modificações significativas na realidade contemporânea transformam a dinâmica social, o que conforma mudanças significativas de estruturação das relações sociais e faz emergir outras formas de vínculos sociais e mediações específicas dessa particularidade histórica, configurando outras formas de regulação e funcionamento de produção da existência, dadas às condições concretas decorrentes desse contexto e dessas modificações. 

Contemporaneamente, as formas de dominação evidenciam os aspectos regressivos da constituição psíquica, quando o outro, condição de existência do indivíduo e da cultura, internalizado na dinâmica psíquica, parece ter se pulverizado. E essa tendência psíquica regressiva revela às condições objetivas nas quais ela se inscreve, referida, portanto, às condições históricas e sociais geradoras dessa subjetividade, condições objetivas que também revelam aspectos regressivos. 

Tal realidade é marcada, por um lado, por novos padrões de regulação dos vínculos sociais, que opera de acordo com padrões de eficiência, flexibilidade, criatividade e que anuncia a autonomia, independência e liberdade do indivíduo, o prazer, corroborando e legitimando um determinado tipo de procedimento da razão  técnica, instrumental, pragmática, utilitarista que consolida o hedonismo, o hiperindividualismo –, uma subjetividade “modelada”, “reificada”, “administrada”, narcisista. 

Lasch (1979) fala em uma cultura do narcisismo,  concepções que, segundo  Birman (2001), se relacionam na compreensão sobre o que tem se configurado na modernidade – ou como muitos nomeiam, na pós-modernidade.  O que se configura, então, é um culto à imagem individual, de um exibicionismo exacerbado, exaltação do eu, culto ao narcisismo: “o sujeito é regulado pela performatividade mediante a qual compõe os gestos voltados para a sedução do outro” (BIRMAN, 2001, p. 188). Dessa forma, o indivíduo passa a ser determinado pela sua performance, por aspectos simplesmente singulares, de modo que é esquecida sua relação com o contexto histórico-social moderno. 

Este [o indivíduo] é apenas um objeto predatório para o gozo daquele e para o enaltecimento do eu. As individualidades se transformam, pois, tendencialmente, em objetos descartáveis, como qualquer objeto vendido nos supermercados e cantado em prosa e verso pela retórica da publicidade (BIRMAN, 2001, p. 188). 

Plastino (2002, p. 1) reitera essa compreensão sobre o psiquismo humano e observa que

[...] separado da natureza, dos outros e de si mesmo, o homem da modernidade transformou o objetivo de domínio em prática predatória. Definido exclusivamente a partir de sua racionalidade, este homem transformou a fantástica racionalidade parcial presente nas suas ciências e nas suas práticas produtivas numa gigantesca irracionalidade global. A análise mais sumária da situação contemporânea ilustra sem ambiguidades esta irracionalidade global. 

Enfatiza Plastino (2002) que o avanço da produção de bens e serviços à disposição da humanidade, assim como o “fantástico” desenvolvimento tecnológico, não implicou melhoria das condições de vida da humanidade, ao contrário, provocou o aumento do desemprego e da miséria. “Numa perspectiva de feroz darwinismo social – a sobrevivência dos mais fortes – o crescimento da violência nas relações sociais aparece apenas como mais uma modalidade da violência que preside a apropriação do poder e dos recursos materiais por uma minoria” (PLASTINO, 2002, p. 2). 

Estão em causa, portanto, os processos de individualização, assim como as instâncias de mediação que configuram esse tipo de racionalidade, quando a lógica da produção exerce domínio absoluto: sobre o Estado, sobre as relações políticas, sobre as relações sociais e sobre o indivíduo. E nessa configuração, certamente a civilização tem se tornado, em muitos aspectos, desumana, onipotente, predatória. 

Assim, a violência, a desesperança, o esmagamento dos mais desprotegidos e fracos, o medo de quase todos, a solidão, são expressões de uma civilização que, fundada sobre uma compreensão narcisista do homem, parece estar esgotando hoje as suas possibilidades de desenvolvimento. Isso nos leva a considerá-la como uma expressão singularmente grave e perigosa de um conjunto de práticas individuais e coletivas destrutivas e autodestrutivas. Estas práticas se caracterizam pela negação da alteridade, pela transformação do outro em objeto e, em certa medida, pela transformação do próprio sujeito em objeto (PLASTINO, 2002, p.3).

Se essas condições são as que viabilizam a civilização, são também as que restringem o indivíduo e acarretam implicações à sua constituição psíquica. O reconhecimento de um desacordo de interesses entre as demandas do indivíduo e as demandas culturais deve ser (des)velado, na medida em que anunciar a possibilidade de resolução desse conflito, eliminando as fontes de insatisfação, com a promessa de que a renúncia não é mais necessária, é caminhar rumo à barbárie. 

Consequentemente, os controles sociais na contemporaneidade, que assumem formas cada vez mais complexas e sofisticadas, são mais sutis, mas certamente revelam formas cada vez mais autoritárias de controle e regulação social. Ainda que se apresente com uma roupagem nova e que anuncie a prevalência do desejo e da plena realização do ser humano, na verdade, é mais regressivo. 

Convém concluir assinalando que Freud deixa uma imagem inconclusa de guerra permanente entre Eros e pulsão de morte, sem a menor chance de antecipação do resultado. Nessa sociedade que exige tanto e dá tão pouco, a luta entre Eros e Thanatos, persistente e só, se desenvolve: 

Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’, o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado? (FREUD, 1978 [1930], p.194).

 

Que Eros sobreviva!

A luta continua!


* Mona Bittar é professora aposentada da Universidade Federal de Goiás e militante histórica do PCB.

** O presente artigo é desdobramento da participação da autora no debate especial acerca da obra O Mal-Estar na Civilização, de Sigmund Freud, no âmbito do Círculo de Debate de Formação Estado, Política e Classes Sociais.


REFERÊNCIAS 

BIRMAN, J. Mal- estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 

CROCHICK, J. L. Autoritários, psicopatas e manipuladores. A Terra é Redonda, 22 ago. 2020. Disponível em:  https://aterraeredonda.com.br/autoritários-psicopatas-e-manipuladores/. Acesso em 5 set. 2020. 

FREUD, S. O instinto e suas vicissitudes (1915). In Metapsicologia – livro 11.   Rio de Janeiro: Imago, 1974. Pequena coleção das obras de Freud. 

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores. 

FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores. 

FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego (1921). In: Obras completas, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: Obras completas, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980. 

LASCH, C.. A Cultura do narcisismo - a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983. 

MARX, k. Manuscritos econômicos e filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

PLASTINO, C. A. Dependência, subjetividade e narcisismo na sociedade contemporânea. Revista Eletrônica Rubedo, 2000.

 

Entrevista da Escola de Formação Socialista com a Embaixadora da Síria no Brasil

 



A Embaixadora da República Árabe da Síria no Brasil, Rania Haj Ali, concedeu à Escola de Formação Socialista (EFS) entrevista, sob a forma de questões estruturadas enviadas antecipadamente, na qual versou sobre questões como a postura do Estado e da sociedade síria em relação à descolonização da África e da Ásia, a presença imperialista nos países árabes, o que efetivamente foi a chamada "Primavera Árabe" e a ocupação contínua de parte do território sírio pelos Estados Unidos.

A  entrevista ocorreu em junho de 2023 e foi conduzida por Laércio Júlio da Silva (Jobi), Secretário do Grupo de Apoio e Solidariedade Popular Brasil-Síria (Gaspbrsiria), e Pedro Henrique Valeriano Rodrigues, militante da União da Juventude Comunista (UJC-GO). 

 

EFS – Fazendo uma recuperação histórica, como foi o apoio histórico e a solidariedade da Síria aos movimentos de libertação nacional dos anos 1960 e 1970 na Ásia e na África?

Embaixadora Rania Al Haj Ali – Desde sua independência em 1945, a Síria apoiou movimentos de libertação do colonialismo e da ocupação estrangeira na Ásia, na África e em todos os países do mundo que estavam sob ocupação. Esse apoio se distinguiu pelas posições sírias adotadas nos fóruns internacionais e nas votações em favor das Resoluções das Nações Unidas relativas ao tema. Após a deflagração da Revolução de 8 de março de 1963, sob a liderança do Partido Socialista Árabe Baath, o apoio da Síria foi fortalecido de várias formas, incluindo apoio material para causas internacionais justas, a luta contra o colonialismo, o imperialismo, o sionismo e o racismo, apoiando os povos em sua luta de libertação e os esforços em prol da paz e da segurança internacionais. A Síria é um Estado-membro das Nações Unidas, participa ativamente de todas as reuniões dos órgãos da organização e coordena com países em desenvolvimento e países do Sul o apoio aos movimentos de libertação e causas justas de povos em desenvolvimento. Também aderiu a blocos políticos contrários ao colonialismo, liderados pelo Movimento de Países Não Alinhados.

A Síria ocupa o cargo de Relator do Quarto Comitê das Nações Unidas (denominado Comitê de Política Especial e Descolonização) e esse Comitê analisa uma ampla gama de questões de sua agenda relacionadas à descolonização, aos efeitos da radiação atômica, a assuntos relativos à informação, faz uma revisão abrangente da questão das operações de manutenção da paz, bem como uma revisão das missões políticas especiais, da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA), das práticas israelenses e das atividades de assentamento que afetam os direitos do povo palestinos e outros residentes árabes dos territórios ocupados e da cooperação internacional no campo pacífico e dos usos do espaço sideral. Por meio desse cargo, a Síria também  fornece todo o suporte necessário nesse contexto.

 

EFS – Como se desenvolveram as relações entre Síria e Estados Unidos/Europa e entre Síria e União Soviética desde a afirmação da sociedade e Estado Sírio independente?

Embaixadora Rania – O princípio nas relações bilaterais entre a República Árabe da Síria e outros países, após a sua independência, qualquer que seja a forma do sistema político adotado nesses países, baseia-se nas metas e nos objetivos da Carta das Nações Unidas e nas disposições do Direito Internacional, que regula as relações entre os Estados, com base no princípio da igualdade entre os países, no respeito à soberania e à integridade territorial dos países e na não interferência nos assuntos internos dos outros países (a Síria esteve entre os países fundadores desta Organização das Nações em 1945, durante a Conferência de São Francisco).

A Síria se recusa a subordinação a qualquer país e suas posições em relação às questões internacionais são um indicativo da independência de sua decisão política. A Síria estabeleceu relações diplomáticas com quase todos os países, incluindo os Estados Unidos da América e países da Europa Ocidental e Oriental, exceto a entidade de ocupação israelense, pois a Síria está em estado de guerra com ela e há terras sírias ocupadas por ela, que é o Golã sírio. Essa causa nacional juntamente com a causa palestina são a causa de todos os árabes, não apenas da Síria. Acabar com essa ocupação israelense é uma prioridade nacional. E certamente as posições dos países ocidentais em relação às questões nacionais determinam o grau de importância desses países para a Síria. Portanto, existem relações diplomáticas com os países ocidentais por razões diversas, que são do interesse da Síria e do povo sírio em primeiro lugar, com base no princípio de respeito à soberania e não ingerência nos assuntos internos dos países e não necessariamente com base no apoio desses países às nossas questões nacionais.

Desde a sua independência, a Síria manteve boas relações de amizade e cooperação com a União Soviética, depois da Revolução de março de 1963. Com o estabelecimento do Movimento de Correção, na década de 1970, essas relações foram fortalecidas e passaram para o nível de uma firme aliança em todos os níveis nos campos político, econômico, militar, científico, cultural e outros. A aliança não foi afetada negativamente pelas mudanças internacionais que afligiram o mundo no final dos anos oitenta e início dos anos noventa do século passado e que levaram a um domínio unipolar representado pelos Estados Unidos da América. O relacionamento manteve-se forte com a Federação Russa depois disso.

 

EFS – O fim da União Soviética impactou a Síria? Se sim, de que forma?

Embaixadora Rania – É certo que o fim da União Soviética afetou a Síria negativamente em vários aspectos, conforme se segue, mas sem se limitar somente a eles:

No aspecto político, já que a Síria perdeu um forte defensor de suas questões nacionais nos fóruns internacionais, assim como o estado de instabilidade em uma região geograficamente próxima à Síria definitivamente a afetou de modo negativo. Além disso, a singularidade dos Estados Unidos da América na tomada de decisões políticas e econômicas no mundo teve um impacto negativo para os países do mundo em desenvolvimento e o seu domínio unipolar do sistema internacional global e do pensamento ocidental levou vários países a mudarem suas alianças e algumas de suas posições, inclusive em vista das pressões exercidas sobre eles por parte do Ocidente e da ausência de uma parte internacional que refreie essas pressões (como era o caso da União Soviética).

No aspecto econômico, os acordos foram suspensos ou congelados em todos os campos e o domínio do pensamento ocidental e do chamado sistema econômico liberal ofuscou a natureza das relações entre os países, o que levou a um declínio da força dos princípios socialistas.

Aspectos científicos e culturais foram afetados por meio das bolsas de estudo e da cooperação científica e cultural que existiam.

 

EFS – Qual era o lugar geopolítico e cultural que a Síria, enquanto sociedade e Estado laico, desempenhava no Oriente Médio entre os anos de 1990 e os anos 2000, para o chamado "mundo árabe", em especial em face das potências regionais representadas por Israel, Turquia e Arábia Saudita, aliados dos Estados Unidos e da Europa Ocidental?

Embaixadora Rania – A República Árabe da Síria é um país árabe secular, que goza de uma localização geográfica e estratégica e de ricos componentes do povo sírio, portanto, sua cultura é rica e este é um dos fatores de sua força, apesar de ser um país de pequenas dimensões. A Síria orgulha-se de sua história antiga e contemporânea, especialmente da luta dos filhos de seu povo para libertá-la dos invasores, sendo a última a invasão francesa no século passado. É importante saber que a Síria é um Estado fundador da Liga dos Estados Árabes, sob a liderança do falecido Presidente Hafez al-Assad, quando o país desfrutou de um período de estabilidade, solidez e crescimento econômico após décadas de golpes militares e tensões políticas na região e no mundo. Graças à sua sábia liderança na década de noventa, durante seu mandato e, também, na primeira década do século atual sob a liderança do Presidente Bashar al-Assad, a Síria conseguiu se proteger em certa medida das repercussões da invasão americana do Iraque em 2003 e conseguiu desempenhar um papel central positivo na região árabe e seus arredores em questões árabes comuns, com o objetivo de preservar os interesses árabes nesse contexto, especialmente a centralidade da causa palestina, levando em conta que os países árabes se localizam geograficamente numa região muito importante do mundo onde se concentram recursos subterrâneos, especialmente petróleo e gás, bem como rotas de abastecimento marítimo e terrestre entre leste e oeste, norte e sul, além do impacto dessas características sobre a Ásia Central e Oriental e sobre a Europa, onde há grande demanda por fontes de energia. Ademais, enfrenta as repercussões da presença da entidade de ocupação israelense no seio do mundo árabe, que atende aos interesses do mundo ocidental, especialmente dos Estados Unidos da América e de países da Europa Ocidental e sua contínua ocupação de terras árabes constitui um estado de instabilidade na região em todos os níveis.

O papel da Síria no mundo árabe é construtivo e de apoio à ação árabe conjunta, de forma a aumentar o status e a força dos países árabes e sua influência em nível global. A Síria apoiou,  nesse contexto, o direito do povo palestino à libertação da ocupação israelense. Também nesse contexto, apoiou a resistência palestina e libanesa, continua e continuará a apoiá-las até a completa libertação das terras árabes ocupadas na Palestina, no Líbano e na Síria (o Golã sírio ocupado). A Síria constituiu um fator estabilizador naquela inflamada região do mundo, pois todos nós nos lembramos da invasão americana do Iraque (existem extensas fronteiras entre a Síria e o Iraque) e as subsequentes destruições e tragédias, cujas repercussões ainda existem até agora no Iraque e em países vizinhos, incluindo a Síria e até mesmo o mundo. A  resistência da Síria no enfrentamento ao terrorismo destrutivo, durante os últimos 12 anos,  teve um papel fundamental para impedir a disseminação do terrorismo para outros países árabes, para o ambiente regional e para além, na Ásia Central até chegar à Rússia e à China. A Síria, naquele difícil período da história da região e apesar dos graves desafios, lidou com todos com base no princípio do respeito à soberania dos países e da não interferência nos assuntos internos dos países. E atuou, dentro do possível, para manter a Ação Árabe Conjunta e preservar a causa da libertação das terras árabes da ocupação israelense como uma prioridade para a ação árabe. Assim e apesar das diferenças de posicionamento e abordagem política de cada país (porque se trata de um assunto interno de cada país), desde que não constitua uma ameaça aos seus interesses nacionais, a Síria mantém relações diplomáticas com os Estados Unidos da América, com a Arábia Saudita e com a Turquia, sob o princípio da não interferência nos assuntos internos dos países e suas decisões sobre suas relações bilaterais com outras partes.

 

EFS – Na sua opinião, é possível tecer uma leitura ampla do que foi efetivamente a chamada “Primavera Árabe” do início dos anos 2010? Do seu nascimento às consequências geradas?

Embaixadora Rania – Certamente é possível, especialmente depois de cerca de 13 anos desde o início dessa maré destrutiva para o mundo árabe e dos resultados atuais em vista da situação presente na região árabe. Na verdade, a leitura da Síria desde o início foi correta, ao observar que os slogans lançados para justificar a chamada “Primavera Árabe” eram sobre a difusão da democracia, da liberdade e dos direitos humanos, mas deliberadamente se abandonou tudo o que se referia aos direitos nacionais e árabes, especialmente o que se remete à libertação das terras árabes ocupadas pela entidade israelense. E com a entidade de ocupação israelense declarando seu apoio aos grupos terroristas armados, que se espalharam e se tornaram ativos na Síria, fortaleceram-se as convicções de que os verdadeiros objetivos da chamada “Primavera Árabe” eram destruir e dilacerar os países árabes por dentro e dividi-los em pequenos Estados por motivos não nacionais (com base em aspectos étnicos e religiosos para justificar o judaísmo de Israel) e seu empobrecimento e a divisão de seus povos para garantir sua fragilização e fortalecer a hegemonia dos Estados Unidos da América sobre a região e sobre suas riquezas e meios de acesso e abastecimento, assegurando a supremacia de sua protegida Israel na região árabe. A verdade ficou muito clara para muitos, mas ainda há aqueles que ainda acreditam que o que aconteceu foi uma primavera árabe e estes que acreditam dependem dos Estados Unidos da América e das organizações não governamentais que foram estabelecidas e financiadas de forma "generosa" na região árabe.

 

EFS – Analistas têm apontado que a “Primavera Árabe” na Síria, que eclodiu como guerra civil desde 2011, teve a presença de terroristas treinados e armados por países ocidentais e seus aliados regionais, apresentados como movimentos beligerantes legítimos de oposição ou de oposições. Efetivamente, se esses analistas estão corretos, quais países armaram, treinaram e financiaram essa oposição ou essas oposições?

Embaixadora Rania – Para começar, o que aconteceu na Síria não foi uma guerra civil, mas sim uma guerra terrorista lançada contra a Síria e seu povo utilizando o terrorismo (grupos terroristas armados), que recebeu apoio do exterior, com dinheiro, armas, mídia e treinamento por parte da França, da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, de Israel, da Turquia e de outros. Infelizmente, havia partes na região aliadas a esses países. Os países ocidentais forneceram esse apoio de várias formas, inclusive facilitando a entrada de centenas de milhares de mercenários estrangeiros, de mais de 80 nacionalidades de todo o mundo, nos territórios sírios. Atualmente, os Estados Unidos e outros países ocidentais e países aliados a eles apoiam grupos armados separatistas no nordeste da Síria, além de apoiar grupos terroristas como o Estado Islâmico (ISIS, na sigla em inglês) no leste da Síria (com vários tipos de armamentos, treinamentos e suportes) e grupos terroristas (Frente Al Nusra, cujo nome atual é Hayat Tahrir al-Sham) também no noroeste da Síria. Eles estão recebendo apoio ocidental até agora e essas organizações terroristas estão incluídas nas listas de organizações terroristas divulgadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.

É muito importante ressaltar que não se trata de uma oposição síria. Nunca ouvimos falar da existência de oposição armada em nenhum país do mundo. Onde estão essas oposições armadas nos países do mundo? Algum país do mundo, especialmente os países ocidentais, aceitam a presença de oposição armada, que levanta armas contra o Estado? O que eu sei é que uma oposição é uma oposição política, que opera apenas em quadros políticos pacíficos, e é isso que as leis nacionais dos países do mundo permitem, assim como as leis internacionais. Em todo o caso, os estrangeiros que entraram na Síria, dentre os terroristas, não podem, com toda a certeza, ser considerados como oposição síria.

 

EFS – Que relação esses grupos armados de oposição têm e/ou tiveram com movimentos fundamentalistas presentes no Iraque ou no Afeganistão desde a presença norte-americana nesses países? Como foram materializados os arranjos que redundaram nessa guerra civil?

Embaixadora Rania – A relação existe porque essas organizações terroristas, originalmente grupos fundamentalistas extremistas, ramificaram-se da organização terrorista Al Qaeda, expandiram-se, espalharam-se e ganharam estrutura própria e decisões independentes, tanto no Iraque como na Síria, e agora se espalham nos países africanos no leste, no norte e no centro e nos países asiáticos, especialmente no Afeganistão. Não é mais segredo que os Estados Unidos da América apoiaram a Al-Qaeda no Afeganistão, como afirmaram algumas autoridades americanas. Essas organizações são ferramentas usadas para alcançar objetivos e agendas políticas ocidentais na região árabe e em outras regiões da África e da Ásia, bem como na Ucrânia agora (o que está circulando agora é que algumas delas estão lá, lutando). As operações de treinamento em geral  e não sou especialista em segurança  ocorrem em áreas onde não há controle do Estado em questão ou onde o controle é fraco por algum motivo (geralmente em áreas de fronteira ou em áreas ocupadas por forças estrangeiras). Na Síria, por exemplo, as forças norte-americanas ocupam, há anos, uma área de fronteira entre a Síria, o Iraque e a Jordânia, chamada de área de Al-Tanf, e lá os Estados Unidos da América treinam membros de grupos terroristas, especialmente combatentes da organização terrorista ISIS, para usá-los em várias regiões do mundo, inclusive na Síria em primeiro lugar, para combater o Estado sírio.

Repito, o que aconteceu na Síria não é uma guerra civil, mas sim uma guerra terrorista travada contra a Síria e seu povo.

 

EFS – Quais territórios ainda estão ocupados por esses grupos armados? É procedente a afirmação de que se trata de grupos terroristas?

Embaixadora Rania – Como indiquei acima, há uma proliferação de grupos terroristas armados nas regiões do norte e do noroeste da Síria, bem como nas regiões do leste e do nordeste da Síria, e essa situação nessas regiões é temporária, não importa quanto tempo demore. O Exército Árabe Sírio, com o apoio de aliados e amigos, vai libertar essas regiões das forças estrangeiras ocidentais que estão presentes de forma ilegal em território sírio.

Acho importante prestar atenção ao usar os termos grupos armados e grupos terroristas armados que ocupam parte do território de um país, porque, de acordo com as leis internacionais relativas ao tema, o uso dessa descrição dá um status legal a esses grupos terroristas, implica obrigações e responsabilidades para com eles e lhes dá direitos, ou seja, legitima sua existência e segurança.

 

EFS – Por que países como Israel, Estados Unidos e Reino Unido se uniram e se mantiveram promovendo ataques contínuos à Síria neste período que já está a completar 12 anos? E como se desenvolveu politicamente o apoio militar que a Rússia passou a desempenhar em favor da Síria a partir de 2015?

Embaixadora Rania – Esse grupo anti-Síria se uniu desde o início da crise e da guerra contra ela de várias formas e utilizou ferramentas para apoiá-lo, como indiquei acima, representado por grupos terroristas armados. E, após seu fracasso militar no terreno para atingir seus objetivos de dilacerar a Síria e fragmentar seu povo, esse grupo passou para o estágio de participação pessoal, seja pela ocupação de partes das terras sírias pelas forças norte-americanas e pelas forças de países como França, Grã-Bretanha e outros países ocidentais, sob o domínio da chamada Coalizão Internacional para combater o ISIS (considerada uma aliança ilegal, conforme as previsões do Direito Internacional e a Carta das Nações Unidas), seja também pelo lançamento de agressões e ataques aéreos por parte da entidade de ocupação israelenses em várias áreas da Síria (áreas civis), incluindo o Aeroporto Internacional de Damasco, o Aeroporto Internacional de Aleppo e centros de pesquisa científica. Isso continua até agora. O Estado sírio enfrenta essa agressão e essa ocupação com base em seu direito de se defender, de acordo com o Direito Internacional, e a Síria vencerá essa guerra porque tem direito e não atacou nenhum país ao longo de sua história.

A Federação Russa apoiou a Síria e forneceu ajuda e apoio militar para combater o terrorismo a partir de setembro de 2015, a pedido oficial do governo sírio. Salientamos que a guerra terrorista perpetrada contra a Síria começou em 2011 e a Síria, com sua liderança, povo e exército, atuou no seu enfrentamento e que o apoio ao país foi oferecido, a partir de 2013, pelos amigos como a República Islâmica do Irã e o Hezbollah libanês. Todos sabem que atacar a Síria com terrorismo não se limitará à Síria, pois, caso vença, esse ataque se estenderá ao Líbano, ao Irã, ao Iraque e a países ao redor da Síria e além, podendo alcançar a Federação Russa, a China e também a África e a América Latina.

O apoio militar russo segue até agora e está em constante evolução, de acordo com os desdobramentos no terreno. Vale notar que existe uma base militar russa na Síria, mediante um acordo entre os dois países.

 

EFS – Como a chamada "questão curda" se apresenta atualmente para o Estado sírio? Como essa questão se relaciona aos Estados Unidos e à Turquia?

Embaixadora Rania – Para a Síria e os sírios, independentemente da origem religiosa, étnica e nacional de cada indivíduo, são antes de tudo cidadãos sírios, não havendo bases nacionais ou legais para o que foi referido na pergunta acima (a alegada questão curda). A Síria é a pátria mãe que abraça todos os seus filhos, independentemente das origens acima referidas, assim tem sido ao longo da história até agora. E assim continuará a ser.

Os países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos da América, aproveitam-se disso para semear a discórdia e a divisão entre os povos do mesmo país e explorar as almas fracas, com o objetivo de abalar a estabilidade política, econômica e social de países-alvo, incluindo a Síria. Quanto à Turquia, sugiro perguntar aos interessados sobre esta questão. No que diz respeito à Síria, certamente está empenhada em proteger a segurança de suas fronteiras e das fronteiras dos países vizinhos. A proteção da segurança das fronteiras comuns entre os países deve ser realizada com a cooperação entre os países envolvidos.

 

EFS – É fato que os Estados Unidos promovem saque de reservas de petróleo sírio? Se sim, em que medida esse saque prejudica a sociedade e a economia do país?

Embaixadora Rania – Os Estados Unidos são quem saqueia o petróleo sírio nas regiões do norte e do nordeste da Síria, abertamente e diariamente, desde o início de sua ocupação de partes das terras sírias onde estão localizados os poços de petróleo sírios. Os danos são muito graves para a economia síria e isso se reflete catastroficamente no sustento do cidadão comum. Por causa do roubo das riquezas sírias, especialmente do petróleo, o governo sírio é forçado a importar petróleo em moeda estrangeira. Não devemos esquecer que a Síria está sob um cerco ocidental sufocante, devido às medidas coercitivas unilaterais (UCM) impostas a ela e ao seu povo por anos pelos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos da América. São sanções unilaterais ilegais, de acordo com o Direito Internacional, que equivalem ao terrorismo econômico, visando todos os setores básicos e vitais do Estado sírio, incluindo a alimentação infantil. As fontes de energia são fundamentais no movimento da economia, na produção e em quase tudo (a energia é fonte de vida e a geração de energia elétrica é essencial para garantir o funcionamento de instituições estatais, hospitais, escolas, universidades, laboratórios, padarias, estações de tratamento de água e outros. O combustível é necessário para a movimentação de transporte de mercadorias e pessoas, para automóveis e para todos os meios de transporte público, privado e outros).

As repercussões da guerra terrorista e da pilhagem dos recursos internos e naturais da Síria pelos Estados Unidos da América e outros países a que me referi em respostas anteriores, juntamente com as repercussões das sanções unilaterais (UCM), são catastróficas para a economia e a vida dos sírios, especialmente os grupos vulneráveis entre eles e, dentre os resultados, por exemplo, sem nos limitarmos à queda do valor da moeda nacional e ao aumento significativo dos índices de pobreza entre a população e às repercussões do devastador terremoto que atingiu a Síria em 6 de fevereiro, essas condições de vida pioraram muito. No entanto, os sírios estão firmes, apesar dos preços muito altos que pagaram para preservar seu país, a soberania e a sobrevivência da Síria. O Governo sírio está fazendo todos os esforços, dentro de suas capacidades disponíveis, para atender às necessidades básicas dos sírios, especialmente os grupos vulneráveis entre eles, mas as necessidades são grandes e as capacidades não atendem à demanda por causa dos obstáculos que mencionei.

 

EFS – Por fim, como organizações da sociedade civil, progressistas e/ou vinculadas aos movimentos de trabalhadores, podem contribuir com a Síria na sua luta de resistência contra o imperialismo euro-americano e seus aliados regionais?

Embaixadora Rania – Essas organizações e entidades progressistas, em todo o mundo, independentemente de suas afiliações, podem fornecer forte apoio à Síria e ao povo sírio de muitas e variadas maneiras, incluindo:

- mobilizar o maior número possível de simpatizantes e pessoas solidárias à Síria e a seu povo no Brasil e nos países amigos vizinhos do Brasil, destacando sua solidariedade de forma adequada para que seja conhecida pelo maior número possível de interessados;

- exigir, veementemente, o levantamento das sanções unilaterais e do bloqueio injusto imposto à Síria e ao seu povo pelos Estados Unidos da América e por países europeus e manter essa reivindicação em todas as atividades e fóruns relevantes, realizados pelas organizações referidas na pergunta;

- exigir o fim da presença ilegal de forças estrangeiras, incluindo forças norte-americanas, ocidentais e turcas em território sírio, impedindo o roubo dos recursos naturais da Síria, especialmente o petróleo e o trigo;

- exigir uma indenização para o Governo e o povo da Síria por todas as perdas resultantes do injusto cerco e ocupação de parte das suas terras e do roubo dos seus recursos naturais, especialmente o petróleo. E sublinhar que os países ocidentais, especialmente os Estados Unidos da América, assumam a responsabilidade primária a esse respeito;

- jogar luzes sobre a realidade do que está acontecendo na Síria na mídia da América Latina e sobre o fato de que a narrativa ocidental dos eventos lá é intencionalmente distorcida para servir à agenda ocidental na Síria e na região árabe. Infelizmente, a mídia ocidental domina os meios de comunicação em outros países do mundo, incluindo países da América Latina em geral;

- Solidarizar-se com os esforços do Estado sírio em lançar o processo de reconstrução da Síria e convocar a participação, nesse processo, dos países latino-americanos, especialmente do Brasil, de forma a alcançar o bem comum da Síria e dos participantes de fora da Síria neste grande processo econômico.